terça-feira, julho 17, 2018

(DL) «Vou-me embora» de Jean Échenoz


Francófilo por muitas e boas razões - a começar por provirem do Hexágono muitas das propostas literárias, cinéfilas e filosóficas mais interessantes na época em que a cultura me começou a interessar -  é nessa língua que continuo a descobrir novos livros e autores, mesmo constatando que de outras paragens chegam propostas ainda mais aliciantes. O Nobel atribuído a Le Clézio e a Modiano alegrou-me enquanto reconhecimento de elementar justiça, só tendo ficado mais feliz quando a Academia Sueca consagrou José Saramago. De passagem teria ficado fulo se houvesse dado o prémio a Lobo Antunes, que continua a não se poupar nos insultos ao defunto, por quem mantém ignominiosa inveja (vide a vergonhosa crónica, que assina esta semana na «Visão»!).
Na literatura francesa atual continuam a existir - além dos dois citados - muitos outros, que me dão enorme prazer, quando os leio. Jean Échenoz é um deles, sobretudo quando se dedica à recriação da biografia de personalidades reais (Maurice Ravel, Emil Zapotek). Mas, mesmo quando é outro o projeto, tem-se por garantida uma estória consistente, criada com um estilo elegante sem deixar de se revelar sóbrio na expressão.
Em «Vou-me embora», oitavo romance, que lhe garantiu o Prémio Goncourt em 1999, seguimos as vicissitudes por que passa um galerista quase falido e com o coração a fraquejar - Félix Ferrer - quando é aliciado para dar a volta às dificuldades mediante o resgate de um tesouro de peças inuit num navio há muito encalhado no Ártico canadiano. Sem perder o fulgor literário, o romance explora os recursos do género policial com a manipulação, o roubo da fortuna, a morte de um homem e a perseguição Espanha adentro, sempre com a surpresa a funcionar como estímulo para manter o entusiasmo pela leitura.
Echenoz não nos faz partilhar a psique dos personagens: em Ferrer apenas suspeitamos das inquietações relativas ao possível abreviamento da vida (o que quase chega a suceder!).  Ao leitor destina outro papel: o de se ver interpelado, cúmplice de confidências ou desestabilizado, porque, de um momento para o outro, há quem mude de estatuto, até mesmo de sentido, que julgava ocupar na narrativa. Se chegamos a suspeitar de algo de absurdo a inserir-se na história, acabamos, mais adiante, por compreender a razão de ser. E se, nalgumas alturas, o autor parece demorar-se demasiado em explicações científicas, logo no-las relativiza com alguma desconcertante observação poética.
Há, ademais, as piscadelas de olho aos habituais leitores, que encontram lugares anteriormente já presentes noutros romances, mesmo que a descrição no-los faça imaginar diversa da de antes. É o caso do hotel Albizzia, rodeado de plátanos em «Um Ano» e agora contando com um bosque de eucaliptos onde os estorninhos fazem concerto ruidoso à beira de um jardim de mimosas.
Ao chegarmos às últimas páginas sentimos que Félix Ferrer andara todo o romance à procura de uma nostalgia com o seu quê de desesperada. O ir-se embora, declarado no começo e no final do livro, mais não é do que a constatação de ser a partida para algum lugar a única solução para um universo onde quase todos desconhecem para onde os andam a empurrar.

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