quarta-feira, julho 11, 2018

(DL) Quando o assassino de Luther King esteve dez dias em Lisboa


Nas últimas semanas têm surgido muitas referências ao mais recente romance de António Muñoz Molina, «Como a Sombra que passa«, que tem por tema a estadia de James Earl Ray em Lisboa durante dez dias, quando o FBI distribuía equipas por toda a Europa e o continente americano para o encontrar e inculpar enquanto mais do que provável assassino de Martin Luther King.

Demorando quatro anos a investigar a fundo tudo quanto se escrevera sobre o assunto, Molina nega a possibilidade de existir alguma verdade nas desconfianças da família do líder da luta pelos Direitos Civis quanto à existência de uma conspiração ao mais alto nível do Estado para o silenciar. A comprovar-se seria uma tese muito interessante quanto à ilimitada ação de quem detém o poder contra quem o contraria, mas todos os indícios apontam para mais prosaica explicação.
Tendo-se deslocado a Memphis para estudar in loco o local do crime, Molina concluiu que a probabilidade de sucesso num atentado contra King era muito elevada tendo em conta a escassa prevenção tomada por ele e seus colaboradores para que isso não sucedesse. Perante as ameaças que sobre ele pendiam e quase concretizadas em ocasiões anteriores, a opção para ir a Memphis numa altura em que se agudizavam ali as lutas raciais revelou-se trágica, tanto mais que complementada com a decisão de se alojarem num motel tão exposto a atiradores solitários, que se localizassem nos prédios vizinhos.
Surpresa inesperada seria a enfrentada por Ray, um racista boçal, que julgava-se a salvo da imputação do crime porque o sul dos Estados Unidos tal qual o interpretava era o de qualquer branco matar aleatoriamente um qualquer negro e não haver polícia ou juiz com outra cultura, que não fosse a de ilibar à partida o autor da façanha. Ver-se com a polícia a pisar-lhe os calcanhares, enquanto fugia sem qualquer plano pré-estabelecido tê-lo-á por certo confundido.
A confirmação quanto ao amadorismo de Ray comprovou-se nessa estadia em Lisboa onde alojou-se em espeluncas com os bolsos praticamente vazios. Daí que procurasse realimentá-los com o produto de dois assaltos, que correram mal.
Partindo desses acontecimentos históricos, lidos de acordo com as conclusões escalpelizadas durante o julgamento do criminoso, Molina não só imagina o que ele terá sentido numa cidade estranha, onde se falava uma língua desconhecida, mas vista por ele como um trampolim para uma fuga bem sucedida até teatros de guerra africanos, onde a sua falta de escrúpulos coincidiria na perfeição com a profissão de mercenário. Há também a recriação do que terá sentido Luther King pouco antes de se ver assassinado na varanda do Lorraine Motel de Memphis. E ainda sobra a revelação de todo o percurso criativo, que conduziu Molina desde a congeminação da ideia em que assentaria o romance e a sua concretização prática. Como de costume com o que costuma sair da imaginação do escritor, «Como Sombra que passa» é proposta de leitura com fundamentado interesse para quem gosta de uma estória bem contada.

Sem comentários: