sábado, julho 07, 2018

(DL) «Evangelha», romance de David Toscana


Imaginativa a tese do romance de David Toscana, escritor mexicano nascido em 1961 e que viveu em Lisboa durante alguns anos: porque é um deus distraído, que delega nos anjos o cumprimento das suas diretrizes, Jeová fica quase em estado de choque, quando descobre ter saído do ventre de Maria uma menina, e não o seu projetado varão.
Não é o único dececionado, porque os três reis magos regressam a casa, levando consigo as prendas destinadas ao Rei dos Judeus, quando dão com Maria ufana por ter concebido a Rainha do seu povo. Porque Emanuel, a seu ver, tem tantas condições para cumprir a missão divina, quanto se tivesse saído de dentro de si um bebé do sexo masculino.
De imediato, a imprevista situação até constituíra vantagem para o recém-nascido: como a ordem dos soldados de Herodes era para matarem todos os varões de Belém com menos de dois anos Maria consegue fazer com que lhe poupem a filha ao exibir-lhe os atributos femininos. E poupa-se igualmente à imprevisível fuga para o Egito.
A rapariga crescerá disposta a cumprir o desígnio original passando tempos infindos nas tabernas a contar histórias bíblicas, em tenaz exercício de proselitismo, revelando o carácter forte de quem nasceu para escusar-se a obedecer e muito menos a calar.
No entretanto, sentado à direita do Pai, o espírito de Jesus desespera porque tarda a sua corporalização, revelando-se Gabriel demasiado incompetente para que a versão canónica da História se cumpra. Quando, enfim, o consegue, Jesus vai parar junto dos ameríndios vivendo curta existência devido à perigosidade das doenças locais.
Há também Jacob, o irmão de Emanuel, nascido das relações conjugais entre José e Maria, e eivado do ciúme por não ter sido o escolhido. Muito embora insista em que o chamem Jesus, a credibilidade é nula, jamais alcançando chegar aos calcanhares da irmã.
David Toscana revela um conhecimento profundo da mística cristã e é graças a tal competência, que pode denunciar-lhe as contradições e incongruências, muitas vezes com um humor inexcedível. Revelando-se um cético, ele próprio enaltece a falta de discernimento da Igreja Católica ao dissociar-se da existência de Adão e Eva para professar a veracidade do darwinismo. É que, se conclui nunca ter existido Eva, nem o correspondente pecado original, para que teria sido preciso mandar o Filho de Deus à Terra com o exclusivo fito de lhe dar a devida redenção?

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