terça-feira, julho 03, 2018

(DL) «As Fogueiras da Inquisição» de Ana Cristina Silva


Nunca é demais divulgar a barbaridade, que os nossos antepassados testemunharam, e em que provavelmente participaram, quando se tratou de perseguir e fazer queimar judeus. A História lusa, que o salazarismo tanto quis enaltecer como uma ininterrupta sucessão de heroicidades, foi, pelo contrário, marcada por bem mais frequentes indignidades.
Com «As Fogueiras da Inquisição», Ana Cristina Silva ofereceu-nos um romance envolvente sobre a criação do Tribunal do Santo Ofício no reinado de D. João III, dando carta branca a fanáticos para que identificassem, condenassem e queimassem todos os suspeitos de heresia, de bruxaria e de judaísmo. No entanto, a criminosa ação contra os judeus já vinha do reinado anterior quando uma conspiração bem engendrada propiciou o massacre de 1506, só travado pela tardia e ambígua ação de D. Manuel I.
É essa ignomínia, que placa evoca no Largo de São Domingos, verdadeiro epicentro dessa manifestação de homicida intolerância.
Começamos por encontrar a desditosa Sara de Leão aprisionada nos cárceres do Tribunal de Évora onde oficia o sinistro D. João de Bragança. Enquanto espera pelos interrogatórios ela evoca precisamente esse massacre a que, por quase milagre, escapara o avô. É no entanto a avó, Ester, quem ganha primazia na primeira parte do romance por a recordar como influente educadora dos ritos da herança familiar.
Se nos é dada uma panorâmica ajustada dos usos e costumes daquela época, a autora dá largas à vocação de psicóloga (atividade em que tem sido docente e investigadora) para detalhar os sentires das duas mulheres. Mas, igualmente, lhe aguça a imaginação a personalidade perversa do Inquisidor, a quem, com argúcia, a suspeita vai trocando as voltas, frustrando-lhe a vontade de lhe aplicar expedita pena, só conseguindo a prova da sua culpabilidade quando se excede nas intenções crapulosas a seu respeito.
Nos anos recentes dificilmente se consegue encontrar biltre de índole ainda mais detestável nos romances de autores portugueses. Se nos lembrarmos que, pelo menos desde Flaubert, sabemos quanto se identificam os autores com as suas personagens, é sempre desafiante ponderar a que recônditas circunvoluções cerebrais recorrem, quando as obrigações criativas os conduzem a congeminar tão execráveis criaturas. Sobretudo se nos recordarmos na proposta complementar de Freud, quando enunciou a tese de detestarmos nos outros aquilo que mais odiamos reconhecer dentro de nós.
«As Fogueiras da Inquisição» complementa bem o retrato dado por Richard Zimmler n’ «O Último Cabalista de Lisboa», quando a curiosidade nos estimula a conhecer o quotidiano dos nossos antepassados de há cinco séculos...

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