sábado, julho 08, 2017

(S) Anna Magdalena, uma injustiçada compositora?

Gosto muito de uma frase italiana, que suscita múltiplas possibilidades à nossa imaginação:  si non e vero e bene trovato!
Ela ajusta-se na perfeição ao filme «Written by Mrs. Bach» de Alex McCallEirini Vachlioti, que deram  expressão cinematográfica às teses de um estudioso da obra do grande compositor alemão do século XVIII. Segundo Martin Jarvis é muito  provável que algumas das mais conhecidas peças instrumentais a ele atribuídas, tenham sido afinal compostas pela sua segunda esposa, Anna Magdalena. Dever-se-lhe-iam, por exemplo, os célebres solos para violoncelos, que são  das obras mais conhecidas e admiradas atribuídas a Bach.
A História da Música assinala com alguma surpresa o facto de serem tão numerosas as obras conhecidas de Bach. A prodigalidade da sua inspiração surpreende, sobretudo, pela beleza e complexidade do que dela resultou.  Por outro lado, e muito surpreendentemente, quase não se conhecem mulheres compositoras antes do século XX. No entanto, sabe-se que elas tinham formação musical, sendo Anna Magdalena uma excelente cantora, para além de copista das obras do marido. O que a impediria, pois, de se deixar imbuir pelo ambiente criativo em que se vivia e também ela dar azo ao talento, que lhe era reconhecido?
Há também a questão do afã com que o primogénito do compositor, Carl Philip Emmanuel Bach, filho da primeira mulher dele, se apressou a queimar ou destruir toda a documentação pessoal  do pai, cuidando ele próprio de lhe traçar a biografia de acordo com a sua própria versão. Lamenta-se, por isso mesmo, que se conheça bem menos sobre a vida e obra de Johann Sebastian do que de muitos outros compositores seus contemporâneos e até mesmo anteriores. Pode-se supor que o enteado de Anna Magdalena não estaria propriamente disposto a contribuir para a celebridade da madrasta em detrimento da genialidade do pai, que procurava promover.
O que o professor Jarvis defende é a existência de discrepâncias de estilo, e sobretudo, diferenças grafológicas evidentes nas partituras a que teve acesso, indicando a maioria que seriam obras de Johann Sebastian, mas algumas outras da esposa.
Sabendo-se  que existem outras peças, igualmente tidas como de Bach, afinal compostas pelos assistentes, não custa crer que ele tenha assumido a liderança de uma empresa familiar com Anna Magdalena e os colaboradores a criarem novas peças sob a sua supervisão, todas elas por si assinadas.
Os puristas, porém, olham para Jarvis como se fosse o diabo, apesar de, na realidade se tratar de um australiano sincero e encantador. Convicto das suas razões procurou aprofundá-las com a consulta direta de outras pautas, mas a instituição alemã  que é delas fiel depositária, recusou-lhe o acesso. Ao mesmo tempo  alguns dos seus principais colaboradores lançaram uma campanha feroz a desacreditar Jarvis, apresentando-o como uma espécie de lunático sem outro objetivo que não o da sua própria autopromoção. O que justifica a desconfiança: se os propósitos de Jarvis são tão absurdos porquê negarem-lhe a possibilidade de, com uma especialista em grafias, analisar mais detalhadamente o que resta das antigas pautas?
As dúvidas são pertinentes, a tese afigura-se-nos perfeitamente credível e, como diz a tal frase italiana, se não for verdadeira não deixa de ser bastante estimulante. Sobretudo por outra linha de pensamento que abre: tendo em conta a diferença entre a forma como hoje encaramos a condição do autor e a de séculos idos até que ponto não existem fundamentos para questionar muitas das premissas em que assenta a História da Música tal qual a conhecemos?



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