segunda-feira, julho 24, 2017

(DL) A aparente tranquilidade de um espaço turbulento

Se há imagens que, amiúde, me vêm à cabeça são as que colhi na antiga Jugoslávia no final dos anos oitenta, quando nada me indiciava a guerra cruel ali ocorrida dois anos depois. Nas ruas de Dubrovnik ou de Split respirava-se a descontração estival de férias dos locais e dos muitos turistas por ali a cirandarem. Estes últimos afluíam de todas as latitudes, enquanto os primeiros não pareciam distinguir-se em características étnicas ou cultos religiosos.
Se, na época me questionassem sobre a região europeia mais previsivelmente ameaçada de guerra civil, aquela estaria longe de ser uma das escolhidas. Quem diria que não tardariam a sangrá-la raids aéreos, bombardeamentos, tiros certeiros de snipers ou assassínios em massa? Ficou-me de lição a certeza de não confundir a aparência de uma realidade com os fantasmas, que nas suas profundezas se agitam.
Muito menos adivinharia que, do norte desse país ainda enorme, viria o meu genro, hoje um orgulhoso esloveno capaz de me dar a sua própria versão de uma ilusão apenas possível enquanto Tito existiu.
«Rapariga em Guerra», romance este ano dado à estampa pela Editora Minotauro, aborda essa tragédia, que quase nos fez perder a esperança no Humanismo, tão grande o ódio alimentado entre vizinhos, e até entre familiares. A narrativa é feita por uma miúda de dez anos, que sente a mudança no dia em que é mandada ao quiosque do costume para comprar cigarros ao padrinho e o vendedor a questiona se queria dos sérvios ou dos croatas.
O homem sabia bem de mais o que ela pretendia, mas a desconhecida antipatia, agora revelada, servia-lhe de demonstração quanto a tudo à sua volta estar a mudar. , no entanto, até então, a vida em Zagreb tinha sido tão idílica, como eu testemunhara nas cidades adriáticas que visitara: além da escola ela passava os dias nas brincadeiras com a irmã Rahela e o seu melhor amigo, Luka.
De um dia para o outro instala-se o medo e a dor, sobretudo quando acompanha os pais e a irmã a uma consulta médica à Bósnia e, como resultado de uma emboscada, torna-se na única sobrevivente do núcleo familiar. Torna-se evidente que Sara Novic - a jovem autora agora com trinta anos - aproveitou a narrativa para construir um testemunho de luto, de amor filial, mas também de resiliência, porque, no meio de tantas contrariedades, importa sobreviver.
Ana Juric, a miúda de Zagreb, irá para os Estados Unidos, aí estudando e recriando-se. Mas a sensação de tudo poder mudar de um dia para o outro, volta a suceder dez anos depois, quando assiste ao ataque das Torres Gémeas. Reforçando a ideia de quanto o nosso aparente bem estar é tão periclitante, sendo posto em causa quando menos se espera. 

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