quinta-feira, julho 06, 2017

(AV) O lóbulo em questão

Em 23 de dezembro de 1888 a população de Arles preparava-se para festejar o Natal, quando a sua tranquilidade foi perturbada  pelo estranho caso de um dos seus mais recentes habitantes, que terá cortado  uma orelha num acesso de loucura e ido entrega-la a uma prostitua no bordel local.
Quase tanto quanto a sua notável obra, bastaria esse episódio para assegurar a Vincent Van Gogh um renome mundial.
Há, no entanto, quem duvide da veracidade do sucedido, tal qual entrou na mitologia dos génios torturados. Teria Vincent cortado de facto a orelha? E quem seria a prostituta, que terá recebido o macabro presente?
A investigadora Bernadette Murphy, autora de «Van Gogh’s Ear: the true story», perfez uma paciente análise dos documentos da época para dissociar esse momento dramático dos exageros logo a ele assacados.
Vincent instalara-se em Arles em 20 de fevereiro desse mesmo ano, decidido a realizar o sonho de se tornar num pintor de sucesso, libertando-se da pesado fardo emocional, que acumulara nos trinta e cinco anos já vividos. A angústia sempre o acompanhara, quase desde o berço. Nascido em 1853, filho primogénito de um pastor protestante, sujeitara-se a uma educação muito severa. Aos 16 anos empregara-se na loja de um tio, que vendia obras artísticas, mas a desadaptação fora imediata: sofrendo por não se sentir à altura do que dele esperavam, ocupou-se transitoriamente numa via religiosa, igualmente condenada ao fracasso.
Foi o seu irmão Theo, que seguiu as pisadas desse tio para quem ambos trabalharam sucessivamente, a convencê-lo a tornar-se artista. Foi em 1880, quando já contava 27 anos. Vincent aparecerá, pois, tardiamente, nessa via criativa.
Sem Théo nunca a História da Arte contaria com o seu talento, muito embora ele tenha demorado a revelar-se: nos primeiros cinco anos a sua paleta de cores sombrias, mormente adotando como tema a vida difícil dos camponeses, não encontrou mercado interessado nos quadros desse período.
«Os Comedores de Batatas», com que concorreu a uma exposição em Paris, não teve quem  o adquirisse,  levando-o a duvidar da possibilidade de encontrar na arte o seu modo de subsistência.
Ao instalar-se com Theo na capital francesa, em 1886, aligeira as cores e os temas, mas continua eivado das suas inquietações. É nesse contexto, que decide mudar-se para a Provença. Aluga a célebre Casa Amarela e, em quinze meses, pinta duzentos quadros, que reproduzem a perspetiva das pessoas e paisagens surgidas ao seu atento olhar.
Torna-se, pois, paradoxal o ocorrido nessa noite de dezembro, muito embora a maioria dos que se dedicaram à sua biografia a integrem nessa súbita loucura, que, daí a quatro meses, o sujeitarão ao internamento num asilo, e quinze meses depois à própria morte.
Baseando-se no testemunho de Paul Signac, que o terá visitado dias depois do incidente, Bernadette Murphy assevera que Vincent só terá cortado o lóbulo da orelha e um desenho a ilustrar o seu cadáver no leito de morte, também o confirma.
O livro irá enquadrar o gesto do pintor numa comunidade que estava pouco habituada a estrangeiros e a eles reagia com preconceito, ciosa dos seus usos e costumes, muito mais próximos dos espanhóis do que dos franceses.

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