terça-feira, julho 04, 2017

(EdH) A primeira colónia americana, entre a ficção e a realidade

Sabemos que os norte-americanos costumam mistificar a chegada dos primeiros colonos às suas costas, idolatrando-os como católicos fervorosos, capazes de estabelecerem boas relações com os índios e lançando as bases da poderosa nação, que reivindica atualmente o estatuto de quase única superpotência. No entanto, aprofundando a investigação sobre os primeiros anos de colonização, o que se encontra é terrível: a fome e a doença foram sofrimentos insuportáveis por que passaram quase todos quantos se viram aliciados pela Companhia da Virgínia para povoarem o Novo Mundo. Entre eles uma pobre rapariga de catorze anos, que saiu de Plymouth, em 1610, para integrar uma expedição de nove navios destinada a revitalizar a quase exangue colónia de Jamestown na costa da Virgínia. Fundada três anos antes na margem de um rio junto ao oceano, em sítio mais pensado para fortificação fácil de defender dos índios e dos espanhóis do que pelas condições para sustentar uma população, Jamestown não tinha água potável, caça disponível e a terra era quase improdutiva ao cultivo. Pior ainda, em 1608, um grave incêndio quase destruíra toda a área já edificada.
As condições de sucesso eram tão adversas que, só nos seis primeiros meses, morreram 64 dos 104 primeiros homens ali estabelecidos. A dependência de Inglaterra, em víveres e outros materiais era total e a possibilidade de insucesso tão grande quanto a de outras colónias ensaiadas pela mesma época e todas concluídas em trágicos fracassos.
A Inglaterra de onde partiam esses aventureiros parecia florescente: vivia-se a época isabelina em que se notabilizavam as peças de Shakespeare, mas existia igualmente muita  pobreza e doenças, que estimulavam os mais pobres a sentirem-se tentados por uma nova oportunidade no outro lado do oceano. Acompanhavam-nos também os párias, retirados das prisões para completarem os lugares em falta previstos pelos organizadores para essa emigração politicamente encarada como estratégica: a Coroa ansiava alargar o seu Império nesse continente quase desconhecido.
Quando partiu, aquela a quem se deu o nome de Jane Doe, era provavelmente a criada de uma família mais endinheirada.
A viagem transatlântica revelou-se terrível: as doenças a bordo vitimaram muitos dos passageiros, atirando-se para o mar trinta corpos, quase todos vitimados pela peste. A agravar esses tormentos a frota enfrentou uma terrível tempestade durante três dias e três noites, perdendo três dos navios e só possibilitando a chegada dos restantes seis a Jamestown em muito mau estado, Os víveres carregados a bordo para suprir as necessidades da colónia quase todos se perderam. Ora, ao fundearem defronte da colónia encontram os seus sobreviventes ansiosos pelos alimentos, que os deveriam acompanhar.
Se era desesperada a situação só tende a piorar. Ademais Jane vai encontrar a colónia em autêntica guerra civil, porque os homens mais influentes tinham-se revoltado contra John Smith, o único de entre eles capaz de mitigar as dificuldades ao chegar a acordo com a tribo índia da região, e até fazendo-se enamorar por Pocahontas, a filha do chefe. Ferido num atentado, Smith embarcou para Inglaterra dois meses depois da chegada da rapariga e nunca mais lhe seria permitido regressar a território americano.
Afastado o elo de comunicação entre os colonos e os índios, estes voltaram à sua anterior atitude belicista e cercaram o forte: todos quantos dele se atreveram a sair foram mortos, pelo que a fome e as doenças pioraram o já terrível cenário. O único poço disponível estava contaminado com bactérias fecais, arsénico e sal, tornando essa água no foco de ainda maior deterioração física do estado de quem a ingeria.
Se tudo isto conhecemos é porque o governador da colónia, George Percy, ia anotando num diário as vicissitudes quotidianas, dando-nos um testemunho valioso quanto à realidade então existente.
Cães, gatos, cavalos, todos os animais domésticos foram mortos para aliviarem a fome permanente dos sitiados. Mas chegou-se ao canibalismo dos cadáveres como se constatou no esqueleto da pobre criada, encontrado na lixeira, que recebia os despojos da cozinha comunitária.
Foram os arqueólogos, que crismaram a rapariga de Jane Doe, por ser o nome normalmente atribuído às vítimas de homicídio não identificadas pela Justiça norte-americana. E foram esses mesmos cientistas, quem sujeitaram esses despojos a análises forenses e concluíram que Jane não fora morta violentamente, morrendo de doença ou de subnutrição, poucas semanas depois de chegar. Mas, convenhamos que a morte ter-lhe-á constituído um alívio perante tanto sofrimento a que se vira sujeitada desde a partida de Inglaterra.
Manifestamente a coincidência entre a fundação de Jamestown e a forma como os filmes e os romances norte-americanos a ficcionaram é quase nula. 

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