quinta-feira, julho 20, 2017

(P) O corpo numa sociedade mais mental

Em recente entrevista o bailarino e coreógrafo Rui Horta diz algo que faz perfeito sentido na sociedade atual: a evolução do conhecimento no último século adquiriu uma tal dimensão, que nos descorporizámos, tornámo-nos mais cerebrais. O corpo converteu-se numa “espécie de último resíduo de natureza que reside nas nossas cidades, quando tudo em redor é cimento, aço, etc.”
Como todas as teses, esta proposta contém contradições bastantes, que fornecem argumentos para a sua aceitação e rejeição. Por um lado nunca se viu tanta focalização no corpo, com ginásios espalhados por todo o lado, revistas dedicadas ao seu culto, mormente por via da dietética nutrição, e uma preocupação exagerada com quanto o possa potenciar: penteados, cosmética, tatuagens, etc.
As palavras de Horta fazem, porém, todo o sentido se nos ativermos à mítica serenidade bucólica de quem, no passado, vivia de acordo com o ritmo das estações, adotando rotinas, que excluíam a necessidade de grandes cogitações. Nesse sentido vivia-se mais com o corpo, que se investia na concretização de tarefas árduas, praticadas nos campos e nas fábricas. A partir do momento em que se substituíram as botas cardadas e os fatos-macacos pela camisa e gravata nos homens e o tailleur  nas mulheres, abandonou-se o ar livre das searas e pomares ou os fumos oleosos das máquinas em atividade pelo ar condicionado dos open spaces, perdeu-se algo da individualidade física para se adotar o ritmo acelerado de uma robotização, contra a qual as mentes se revoltam, se pretendem dissociar numa consciência sentida como própria.
No passado campesino ou proletário não havia necessidade de partir em busca da identidade. Ela estava bem presente nas dores do corpo ao fim de dura labuta. As oito horas passadas num escritório não extenuam os corpos, mas esgotam os recursos das mentes. Ao concluí-las, quem as viveu procura-se a si mesmo, alheia-se do corpo, busca-se dentro dele. É quanto basta para o sucesso das sessões de ioga e outras modalidades orientais, que prometem o acesso àquilo que se é e está tão acossado lá muito para o fundo das circunvoluções cerebrais. O corpo volta a ser um espaço de resistência, a resposta natural ao que passou a ser uma existência quase permanentemente mental.

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