quinta-feira, julho 27, 2017

(I) Quando se morre pelas ideias que se defendem

Anne estava a viver algo de que tanto gostava: nadar nas águas mediterrânicas numa tarde de quase fim-de-semana. Daí a uns dias teria de começar a preparar as aulas para o novo ano letivo, mas o tempo era agora o de saboroso dolce farniente.
Sentiu, porém, que algo mudara no comportamento do espelho líquido, cuja agitação a perturbou. Que se estaria a passar? Olhou para a margem e os nadadores-salvadores cuidavam de mudar rapidamente a cor da bandeira para a vermelha. Urgia sair da água. Foi quando olhou para o lado e viu duas crianças em dificuldades. Tentou nadar para elas, mas a corrente impedia-a, empurrava-a na direção contrária.
Do lado da praia a agitação cresceu: as pessoas clamaram pelo que se estava a passar, os nadadores agarraram nas boias e nadaram em fortes braçadas para salvar os miúdos. Anne sentia-se cada vez mais cansada, desistia de os ajudar. Começou a faltar-lhe o fôlego, a cabeça tinha dificuldade crescente em se erguer acima da superfície…
Terá sido assim que Anne Dufourmantelle, uma das mais conhecidas filósofas francesas morreu no passado dia 21 na praia de Pampelonne, sacrificando a vida numa tentativa falhada de salvamento, praticando afinal o que tanto teorizou em sucessivos ensaios: a devoção aos outros em detrimento da própria vida. Por isso questionava o que levava alguém a nem sequer pensar em si no momento de salvar o outro. Ou a culpa que lhe assistiria se não tentasse esse movimento altruísta. Por isso sintetizava assim a situação-limite: “Tudo depende como o indivíduo se determina nela. Hoje vivemos numa ideologia securitária, que considero tóxica por conduzir a vida e o estar vivo à condição do sujeito e a sua sobrevivência individual ao contexto.” Anne punha em questão como 
se mantém possível a relação com esse outro ao ponto de se lhe oferecer a própria vida.
Neste tempo de afogamentos e de incêndios as palavras do seu romance «L’ Envers du feu» ecoam lugubremente por estes dias: “Estou alongada no chão. O rugido do incêndio invade a noite. Passa sobre a terra. Os animais fogem, alguns em chamas. É uma clareira vermelha. O coração vivo do braseiro  ameaça-me, afasta-se. Fico indemne.”
Na semana passada não foi isso que aconteceu. Anne Dufourmantelle tinha 53 anos e quem a conheceu considera ter tido o privilégio de contactar com um ser de exceção.

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