domingo, julho 09, 2017

(DIM) Falando de mercenários portugueses

Agora que um comprometedor roubo de armamento numa base militar em Tancos é atribuído a mercenários portugueses a trabalharem por conta de interesses mais do que suspeitos a nível internacional, faz todo o sentido voltar a «Terra de Ninguém», um documentário de Salomé Lamas de 2012, que deveria ser de visão obrigatória para todos os espectadores dos programas tontos das várias televisões, que estupidificam as mentes e as prendem a ideias feitas a contrario dos seus próprios interesses.
O que a jovem realizadora nos dá a conhecer é a personalidade de um desses mercenários relatada na primeira pessoa. Paulo Figueiredo andou a estudar para engenheiro, mas foi parar aos Comandos, regimento de assassinos cujos crimes de guerra no teatro colonial não enjeita pormenorizar para a câmara: a morte aleatória de aldeões em cujas sanzalas ele e os companheiros apareciam com orelhas nos cintos para mostrarem a “sorte”, que lhes reservavam, e as granadas atiradas para dentro das cubatas para daí vê-los a “saltar como saguins”. O rosto parece igual ao de qualquer pessoa com que nos cruzamos na rua, mas as palavras, ditas calmamente, expressam ódio racial e assumpção do homicídio como um trabalho igual ao de um vugar manda de alpaca.
Quem ainda possa teimar no branqueamento da guerra decidida por Salazar, onde todos os escrúpulos foram postos em parêntesis para fomentar o sadismo patológico dos que nela encontravam satisfação para os mais baixos instintos, tem aqui a oportunidade de conhecer o rosto de quem foi protagonista dessa efetiva realidade.
Vindo de África por causa de uma Revolução, que continua a detestar, Paulo viu-se perdido em Lisboa, atraído amiúde para as urgências dos hospitais onde poderia ver o sangue a derramar-se satisfazendo assim a falta a adrenalina conferida pelo seu cheiro, pela cor.
A “prestimosa” Associação de Comandos” arranjou-lhe trabalho como segurança de Kaulza de Arriaga e Sá Carneiro, mostrando como foi, é e sempre será o alfobre de gente disposta a alinhar fisicamente pelo que de mais à direita se possa politicamente defender . Depois ficou por conta da CIA a matar gente indiscriminadamente em El Salvador, porque quanto maior a confusão, mais facilmente  o tio Sam ali criava a s condições para impor o seu próprio «filho da puta» (como se referia um conhecido Secretário de Estado a respeito de outro ditador similar na Nicarágua). A seguir andou ao serviço de outro biltre, mesmo que dito socialista (Felipe Gonzalez) a matar militantes bascos dos dois lados dos Pirinéus. Até ser preso e condenado a passar quinze anos na cadeia.
Quando Salomé Lamas lhe deu a palavra Paulo estava com 66 anos e tinha a consciência de enfrentar em breve o próprio fim, abandonado por todos quantos servira, sem papéis e sem abrigo, a viver com outros dois africanos debaixo de uma ponte. Por isso o testemunho tem a importância da confissão de um moribundo social a buscar íntima de redenção, não perante qualquer deus em que não acreditava, mas face aos homens a quem não quis deixar de oferecer a face de criminoso talvez bem menos culpado do que quantos, no recato dos seus salões e escritórios, lhe encomendaram o assassinato de um ror de gente sem fim. 


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