sábado, julho 22, 2017

(EdH) Para que não esqueçamos o lado sinistro dos «heróis da Pátria»

Nestes  dias coincidiu ver tratado o tema da escravatura no que ando a ver e a ler.
No primeiro caso tratou-se da série canadiana «The Book of Negroes», ficção baseada num romance de Lawrence Hill e tendo por protagonista uma escrava meio peul meio bambara, raptada no Golfo da Guiné para ser levada para as plantações da Carolina do Sul. Estava-se em 1745 e ela apenas tinha onze anos.
Embora as vicissitudes por que passa Aminata Diallo sejam romanceadas de forma a singularizar-lhe a resiliência, a série cuida de ilustrar os aspetos mais medonhos desse comércio desumano. Na travessia do Atlântico as condições terríveis nos porões dos navios fomentavam as doenças e desidratavam os corpos, um terço dos quais era atirado para o mar ainda antes da chegada ao porto de destino. Depois a crueldade das plantações de algodão com as raparigas a serem invariavelmente estrupadas pelos patrões.
O que distingue Aminata é ter recebido da mãe os conhecimentos necessários para servir de parteira  às outras mulheres da exploração, ao mesmo tempo que, num esforço autodidata, aprende a ler e a escrever. Paralelamente às suas alegrias e tristezas vão evoluindo os vários episódios da História norte-americana, com a luta independentista a ganhar crescente ímpeto, sem que a Constituição progressista, inspirada nos valores da Revolução Francesa, significasse qualquer benefício para quem não via reconhecida a sua condição cidadã.
A tentativa de criar uma colónia para alforriados na Nova Escócia significa um falhanço rotundo, assim como não será fácil a reinstalação em África, no território hoje crismado de Serra Leoa.
Fundamentado numa laboriosa pesquisa, que justificou a demora de cinco anos em passar de projeto a livro publicado, «The Book Of Negroes» transformou-se numa série simpática, que serviu de revisão de matéria dada, mas com demasiada facilidade para cair no esquecimento.
No tema traduzido em expressão escrita, desta feita em formato teatral, li «Um punhado de Terra» de Pedro Eiras, que é o monólogo de um jovem trazido da mesma zona geográfica que Aminata, mas encaminhado para o nosso Algarve, deixando para trás velhos, mulheres e crianças, assassinados por negreiros, que nos ataques predadores invocavam São Jorge e Santiago.
À chegada a Lagos lá estava o Infante D. Henrique, que os historiadores teimam em qualificar de personagem heróico, quando, na realidade, a presença era explicada por reservar para si uma parte do quinhão.
O desespero do narrador é incurável: a fuga é impossível, sobretudo depois de lhe terem cortado um tendão por a ter tentado. Daí que só lhe reste o suicídio comendo terra, “a terra dos outros”, até mais não conseguir aguentar

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