quinta-feira, julho 13, 2017

(DL) Gente à deriva nos percalços da História

Anna regressou a Kangará muitos anos depois de aí ter vivido alguns dos seus mais recuados verdes anos. A mãe, condenada como inimiga do povo, fora internada naquele campo de trabalhos forçados criado em território cazaque, na Ásia Central. Chegada aos cinco anos transitara para um orfanato onde os maus tratos eram constantes sob o alibi de se tratar de filha de uma contrarrevolucionária. Como aceitar, então, que a quisessem forçar a amar esse homem de bigodes, reverenciado pelos carrascos?
O que encontrou nesse regresso ao passado nada tem  a ver com ele. Onde outrora se afadigavam prisioneiros em doloroso ritmo de trabalho escravo está agora uma cidade habitada por milhares de pessoas, que preferem esquecer a verdade oculta no subsolo. Porque, como reconhece um velho com quem fala, toda aquela área é um imenso cemitério, donde emergem ossos humanos, quando procuram resgatar da terra as batatas aí semeadas.
A Svetlana Alexievich a quem conta essa experiência de viagem, Anna mostra-se racional: quer os prisioneiros, quer os seus algozes, constituíam o povo soviético. Por isso não se espanta com a possibilidade de muitos dos velhos com quem fala terem sido carrascos dos que ali deixaram esses ossos. Mas, mesmo o não tendo sido, quase todos eles preservam o orgulho de terem pertencido a um mundo entretanto desaparecido. Porque a União Soviética era um império e a atual Rússia converteu-se numa sua caricatura risível. Isso fora-lhe dito por outro passageiro do comboio em que viajara para leste: Estaline pegara num  país atrasado, em que a ferramenta de trabalho mais comum era a charrua, e legara aos sucessores um país capaz de já então dominar a tecnologia atómica.
Anna confessa sentir uma insuportável solidão  por muito que, até aos quarenta anos, tenha sempre partilhado o espaço habitável com tanta gente, primeiro no tal orfanato, depois nos apartamentos comunitários tão típicos do conceito socialista. Quando se encontrara com a escritora contava 59 anos e quase não visitava o único filho com quem os litígios eram constantes. Mas, nesse sentido, reproduzia o que vivenciara com a própria mãe, com quem voltara a residir quando ela regressara de Kangará: nessa época os olhos tristes ainda mais se afundavam nos abismos íntimos da dor ao vê-la cantar com entusiasmo as canções da Konsomol. Agora, relativamente ao filho, Anna não consegue suportar o fascínio da nora com todos os atavios proporcionados pelo vitorioso consumismo. É que, em tempos, sentira  tudo ter, quando, na realidade, nada tinha...

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