domingo, julho 16, 2017

(DIM) Fernando Maurício, o reabilitador de um dos execráveis éfes

A minha relação com o fado não tem sido muito pacífica: ainda sou  do tempo em que o José Mário  Branco cantava que o fado choradinho de tabernas e salões, semeava só desalentos, misticismos e ilusões. Convenci-me, quando ainda vingava a «outra senhora«, que o fado era um dos três éfes a derrubar, razão porque me fui dissociando progressivamente da ligação  clubística da infância e me fiz ateu, avesso a todas as propostas metafísicas.
Pelos anos oitenta um casal amigo convenceu-nos a assistir a um espetáculo de Carlos do Carmo na Academia Almadense - ainda a sala comportava centenas de lugares! - e sensibilizou-me a  empatia do público  com o artista. Às tantas sentia-me como da vez em que fui ao Pedro dos Leitões, com toda a gente a degustar os pobres suínos juvenis e eu a bater-me com um bife de vaca conseguido quase a ferros do empregado espantado com a minha aversão ao prato da casa. Foi isso mesmo que sucedeu com o concerto de Almada:  toda a gente em coro a acompanhar o fadista e eu a sentir-me uma espécie de alienígena,  acabado de aterrara no planeta azul.
A conversão do autor de «Ser Solidário» perturbou-me o bastante para começar a ouvir o Camané  com atenção e até a assistir-lhe aos espetáculos no São Luís. E há uns quatro anos fui a uma dessas visitas guiadas com guia pelas ruas da Mouraria, com um fadista a acompanhar o grupo para exemplificar as diferenças entre um fado castiço e um fado corrido nos vários sítios onde íamos parando. Depois de sairmos do Largo da Igreja de Nossa Senhora da Saúde lá iniciámos a marcha com uma primeira paragem na Rua do Capelão para a homenagem à mítica Severa que ali vivera.  Fomos então subindo bairro  acima, na direção do Castelo, parando para uma ginjinha e para momentos musicais em que o Ruca - assim se chamava o jovem cantor -,  nos ir revelando alguns dos fados mais tradicionais, que compõem o reportório de tantos frequentadores das casas de fado tradicionais e de fado vadio. Foi numa destas últimas, já em Alfama, que concluímos a noite, a comer caldo verde e chouriço assado acompanhado pelo inevitável tintol.
Se não deu para me converter num rendido apreciador do fado - embora isso já tenha sucedido com o enorme Ricardo Ribeiro (mas será fado o que ele interpreta associado a Rabih Abou-Khalil?) - chegou para a atenção se prender num nome até então de mim desconhecido: Fernando Maurício, apelidado de Rei do Fado. Quem dele falou expressou uma devoção singular, que me fez questionar o que andava a perder. E um documentário de 2011, de Diogo Varela Silva, ajudou-me a compreendê-lo. Porque, tal como aprendi a apreciar em Frank Sinatra, ele tinha a preocupação de soletrar todas as palavras com um cuidado extremo, escusando-se a qualquer elisão, de maneira a que elas se nos tornassem limpidamente compreensíveis.
O referido Ricardo Ribeiro, que foi um dos reconhecidos discípulos dessa figura mítica, explica na sua inteligente forma de expressar as ideias, que Maurício fez-se grande, porque soubera criar a exceção, o «estilar» seu característico, que todos  os discípulos passaram a querer imitar. Mas, a exceção, para se cumprir, tem de se basear no conhecimento profundo de todas as regras. E essa é uma lição prodigiosa: a originalidade depende de se conhecer profundamente aquilo de que ela pretende dissociar-se como rutura.
Sobre a personalidade de Maurício ainda sobram outras revelações, que coincidem em todos os testemunhos ouvidos: a generosidade ilimitada e o desprendimento de não ambicionar carreira televisiva ou internacional, bastando-lhe o carinho de quem o ouvia na Mouraria, talvez porque detestava dele afastar-se, sobretudo se isso envolvesse as temidas viagens de avião.
Aos sessenta e um anos já não virei a ser um fadófilo militante, mas, pelo  menos, consegui dissociar este específico éfe dos outros dois, que constituem os paradigmas da execrável alienação.


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