quinta-feira, janeiro 02, 2020

Inquietações: Manipuladores e novos reacionários


A propósito de «Ricardo III», por estes dias em cena no Teatro Nacional D. Maria II, Thomas Ostermeier não refere aquela que pessoalmente entenderia ser uma possível fonte de inspiração para o trabalho criativo, por constituir uma das mais estimulantes abordagens da peça de Shakespeare: o documentário «Looking for Richard», dirigido por Al Pacino em 1996, onde  este testemunhava  a dificuldade de adaptar uma narrativa quase totalmente assente no protagonista por serem quase só figurantes os que com ele contracenam.
O espetáculo de Ostermeier procura superar a limitação com o histriónico desempenho de Lars Eidinger que o carrega aos ombros  durante as duas horas e meia de duração. Mas importa fundamentar a decisão de Ostermeier em criar a sua versão da obra na crescente preocupação política com a Alemanha em particular, e a Europa em geral, onde a presença das extremas-direitas se faz ruidosamente sentir. Daí o interesse por este execrável vilão, capaz de alcançar o poder absoluto à conta da manipulação de todos quantos andam à sua volta. Sem escrúpulos vai causando sucessivos confrontos entre os potenciais inimigos e quantos pudessem servir-lhe de obstáculo, conseguindo criar em seu torno uma aura de adulados seguidores dispostos a tudo fazerem para o ajudarem nos propósitos. Que importa se o rosto prima pela feiura e o corpo se desfigura na sua notória corcunda? Se o aspeto o não ajuda, a capacidade de influenciar pela palavra compensa as limitações físicas com lautos juros.
Na América, que era então a de Bill Clinton, Pacino questionava esse maligno fascínio pelo personagem num contexto bem mais favorável do que o atual: não eram frequentes, nem tão pouco mediáticas, as réplicas hoje diariamente nos telejornais por, inesperadamente, terem visto bem sucedidos os seus intentos. Por isso mesmo uma das questões então colocadas tinha a ver com a atualidade do texto, porventura tido então como demasiado datado. Infelizmente os Trumps, os Bolsonaros ou os Dutertes deram-lhe desagradável resposta.
Talvez esses infaustos sucessos tenham a ver com o que António Guerreiro descreveu na crónica do «Ípsilon» da semana transata. Ele afiança estarmos rodeados de novos reacionários se é que nós próprios o não somos. Implícita fica a relação causa-efeito entre a ascensão das extremas-direitas e o desencanto de muitos citadinos com os espaços em que trabalham - e até há pouco viveram! -, apostando na mudança para verdejantes periferias como forma de se sentirem menos asfixiados. Só que vão à procura duma visão mistificada da vida do campo, que não existe, nem nunca existiu. Porque os camponeses de ontem, como os de hoje, possuíam uma perspetiva meramente utilitária dos recursos disponíveis, em nada coincidentes com os de foro ecologista, a que os pretendem associar. Por isso essa geração a contas com a rejeição de um modelo capitalista acaba por adotar posições inquietantes quando procuram impor as que apenas pré-existiam nas suas cabeças. O que os transforma em rebeldes de causas profundamente falsas, sem que eles assim as queiram entender.

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