sexta-feira, janeiro 24, 2020

Diário de Leituras: «Ataques», um conto de Alice Munro


Meses atrás demos com um estranho aparato frente à nossa casa, destacando-se nele uma ambulância do INEM e um carro de reportagem do «Correio da Manhã». Que havia uma daquelas histórias, que Albarran costumava enfatizar como sempre de drama, de horror e com sangue às pazadas, depressa concluímos. E fizemos aquilo que em nós é uma exceção: ligámos a televisão para o canal da Cofina e lá estava o repórter a dar conta do suicídio de um casal de idosos, que morava num dos primeiros andares depois de serem encontrados já sem vida pela empregada, que lhes costumava vir prestar assistência.

Algo de parecido acontece a Peg, quando vai entregar aos vizinhos a cesta de ovos, deixada em sua casa pelo casal de camponeses  que, regularmente vinha fornecer o bairro.  Pressentindo a invulgaridade deles continuarem sem responder a quem os procurava, contornou a casa, experimentou a porta das traseiras, entrou na silenciosa moradia e encontrou os corpos no primeiro andar. O homem matara a mulher a tiro e rebentara os miolos logo a seguir. Ou tinha sido o contrário a acontecer, algo em que ela não apostaria porque logo quis sair dali para avisar a polícia.
O drama aconteceu em Gilmore, uma daquelas terras de província, onde todos se conhecem. Razão porque a reação de Peg ganha particular evidência quando, cumprido o seu dever cívico, vai abrir a loja de que é dona e passa a manhã a atender clientes até o boca-a-boca divulga-la como protagonista da história. Querem saber dela o que sentira, os pormenores sórdidos do que encontrara, mas ela escusa-se a isso, silenciando o que só ela vivenciara e ainda estava intimamente a processar. E nem em casa, com os filhos ou o marido se torna mais loquaz, indiferente que se mostra perante a curiosidade mórbida de toda a povoação, que vai desfilando de carro por aquela rua sem saída onde mora, ávida de participar de alguma forma num acontecimento que viera perturbar a sua habitual pacatez.
Num relato com menos de trinta páginas a Nobel de 2013 conta um drama e a forma como ele é vivido individual ou coletivamente, fazendo sobressair o comportamento da protagonista que se revela a única a adotar uma reação fora do que os vizinhos entenderiam ser o mais normal. Mas o que se pode esperar de alguém quando se confronta com a morte na sua versão mais brutal? Não terá sido Peg a comportar-se com admirável decência perante o cerceado sofrimento de um casal de idosos, relativamente aos quais é fútil aventar as razões para o seu inesperado ato?

Sem comentários: