domingo, janeiro 05, 2020

Diário das Imagens em Movimento: A ficção e a realidade nos filmes atuais


«Os Dois Papas» de Fernando Meirelles, que está a ter um apreciável sucesso na Netflix, traz-nos uma vez mais a discussão sobre o que é a realidade e a ficção, quando o cinema torna por protagonistas quem costumamos ver nos telejornais. Anthony Hopkins compõe um muito verosímil Bento XVI e Jonathan Pryce um bem-intencionado Francisco. No final questionamo-nos sobre a verosimilhança, já não tanto desse encontro no Vaticano em vésperas da renúncia do primeiro - que  adivinhamos inventado pelos argumentistas! - mas a simples possibilidade de Ratzinger ainda ser capaz de mudar, quando adivinha as consequências da corrupção no Banco do Vaticano e os casos de pedofilia divulgados à escala global.
Pessoalmente, e apesar de tratar-se de opinião que não colhe muitos adeptos, também desconfio naturalmente da bonomia de Jorge Bergoglio, tendo em conta o seu censurável comprometimento com a ditadura militar do seu país nos anos em que muitos antifascistas eram torturados, assassinados e os corpos atirados para as profundezas do oceano a muitas milhas da costa.
Pode-se elogiar Meirelles por não ter escamoteado essa realidade, mas duvida-se do branqueamento que faz de ambos os protagonistas, afinal muito mais dignos de admiração do que as pretéritas condutas justificariam. Fica-se a ponderar se a ficção não vai muito além da realidade e se, por exemplo, a intempestiva reação de Francisco contra a admiradora que, dias atrás, o puxou pelo braço, não desvendou afinal, e durante breves instantes, a sua verdadeira natureza?
Noutro filme, visto por estes dias - «O Congresso» de Ari Folman (2014) - a mesma questão coloca-se relativamente a uma das mais mediáticas atrizes norte-americanas: Robin Wright.
Comece-se por considerar que, embora o filme merecesse uma montagem que lhe reduzissem os minutos correspondentes a umas quantas redundâncias, ele traduz o universo criativo de um dos escritores mais brilhantes da ficção científica: Stanislas Lem. E Folman é brilhante ao convidar a atriz para interpretar o seu próprio papel perante a possibilidade de ser digitalizada e continuar eternamente nos ecrãs em muitos desempenhos futuros sem sequer ter o mínimo controle sobre o tipo de personagens assumidos pelo seu duplo. É, de facto, quando passamos da prestação dos atores em carne e osso (também por ali anda Harvey Keitel!) para os de animação, que a coisa descarrila, embora nos possamos divertir com as muitas citações ali distribuídas pelo realizador para gáudio onanístico dos mais cinéfilos. Ao contrário do filme da Netflix, é a realidade que se sobrepõe à ficção num filme que promete bem mais do que acaba por verdadeiramente oferecer.

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