sexta-feira, janeiro 03, 2020

Diário das Imagens em Movimento: «A Identificação de uma Mulher» de Michelangelo Antonioni


Mesmo tratando-se de um dos filmes menos interessantes de Antonioni, «A Identificação de uma Mulher» confirma quão estimulantes são os filmes de há trinta ou quarenta anos comparativamente com a enormíssima maioria de quantos hoje nos são oferecidos nas diversas plataformas de distribuição. Não é que tivessem maior eficácia na tentativa de nos ajudarem a compreender o mundo em que vivemos, mas faziam-no de forma mais inteligente e estimulante nas questões subjacentes às suas narrativas. E até o erotismo era superior ao que hoje nos servem, seja em doses gargantuescas, seja sob o véu de uma moralidade bafienta, que nos arriscamos a ter de aguentar de volta.
Reconheçamos datado o retrato da alta burguesia, aqui representada no seu vazio entediante. Hoje, desde que vimos Michael Douglas a enaltecer as virtudes da ganância, sabemo-la eivada de uma outra dinâmica, que tende a tornar-se clandestina ao nosso olhar.
Niccoló, o protagonista, é um realizador recém-divorciado, que procura a inspiração para o filme seguinte. Julga encontra-lo no rosto certo, que lhe dê o ensejo de, quase por magia, lhe advir a história a ele associada. Mavi Luppis, a sua nova amante, parece reunir as condições para que isso suceda. É ao iniciar o namoro com ela, que começa a ler notícias sobre a possibilidade do sol vir a expandir-se e ditar o fim da vida terrestre.
A associação entre o amor e a estrela que nos ilumina torna-se óbvia: ambos aquecem e dão sentido à existência. Mas também podem destruir. E essa ameaça logo decorre do assédio a que Niccoló se vê sujeito por alguns mafiosos apostados em convencê-lo da conveniência de se afastar da rapariga. Quando o casal empreende a fuga para se instalar numa casa campestre alugada por ele, são apanhados por um intenso nevoeiro, que prenuncia a rutura iminente entre ambos.
Na elipse seguinte - e são tantas de que Antonioni se serve no seu processo narrativo - Niccoló está remetido novamente para a solidão, tão difícil de suportar. Ele que nunca dera a Mavi a demonstração de a amar, fica obcecado quando ela desaparece sem deixar rasto.
Outra rapariga, quase sua gémea, pode ocupar-lhe o lugar e Niccoló até chega a aventar a hipótese de casamento, mas basta sabê-la grávida de outro para se pôr a milhas. A incapacidade de amar e de ser amado, é também a que nele gera a impotência, não só sexual, mas criativa.
Não admira que, no final, mude de ideias quanto ao tema do seu próximo filme: correspondendo ao desejo do sobrinho, acede a desenvolver a história de uma nave direcionada ao sol para lhe auscultar os segredos. Sabendo que desvendando-os também descobriria os do universo. Ou seja de tudo, incluindo dele próprio, esse desconhecido com quem dificilmente convive.

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