terça-feira, janeiro 07, 2020

Diário das Imagens em Movimento: O lado desconhecido de Lino Ventura


Confesso que nunca tive grande simpatia por Lino Ventura. Na época em que muitos dos setenta filmes em que entrou como ator conseguiam assinalável popularidade, interessavam-me bem mais os da nouvelle vague, considerando-se os outros como próprios de um certo cinema à papa, ou seja pensados para o gosto da geração com que se estava em ativo conflito.
O documentário de Philippe Kohly «Lino Ventura, la part intime» permite uma certa relativização dessa atitude consolidada. Porque o jovem Angiolino Pasquale - seu verdadeiro nome! - fez jus ao princípio de, não se sendo o melhor, nem o pior de entre todos quantos eram seus contemporâneos, sempre procurou ser tão bom quanto o talento e a vontade de o potenciar lhe permitissem.
Tomemos um filme como «Sem Culpa Formada», que Claude Miller rodou em 1981 e o punha a contracenar com o notável ator que foi Michel Serrault. Ele é o inspetor que procura encontrar as provas que demonstrassem a culpabilidade do prestigiado advogado Martinaud no estupro e assassinato de duas meninas. Se se trocassem os papéis entre ambos, Serrault seria um inspetor Gallien tão ou mais credível do que Ventura. O contrário seria impensável, porque os realizadores sabiam que ele nunca aceitaria ser um personagem com um código de valores contrário ao por ele construído dentro de si ao longo do seu dificultoso crescimento. No final da vida ele diria numa entrevista televisiva que compusera personagens a que facilmente apertaria a mão se os encontrasse na rua.
A vida do jovem Angiolino não foi fácil ao nascer em Parma como resultado dos amores da mãe com um sedutor, que logo se colocou a milhas para eximir-se á responsabilidade pela sua educação. Por isso no difícil contexto da Itália saída da Primeira Guerra, em breve rendida aos falsos encantos de Mussolini, a jovem lavadeira e engomadeira depressa pensou em emigrar para onde a vida com o seu bebé poderia tornar-se-lhe um pouco mais fácil. Instalou-se então em Montreuil, nos arredores de Paris, mas não vendo as expectativas realizarem-se, acabou por mudar-se para o décimo bairro da capital onde encontrou colocação fixa como empregada de limpeza de um hotel.
O miúdo Lino cresce num ambiente em que são muitos os delinquentes à sua volta. Seria fácil aderir a esse lado mais selvagem da realidade mas, pelo contrário, desde os nove anos trabalha como ardina e estafeta para ajudar as finanças da família, que continua a constituir com Luisa Borrini. Para se distrair torna-se um frequentador mais do que assíduo das salas de cinema, já que um dia bate todos os records ao ver oito filmes de seguida. James Cagney era então o seu herói, sempre vencedor de disputas onde a violência estava presente. Mas se tudo à sua volta o tenderia a empurrar para a experimentar ao vivo ele aproveitou para a concretizar na luta greco-romana de que se tornou em breve um invencível campeão: como mantinha a nacionalidade italiana foi no país natal, que foi ganhar o título de campeão nacional, antes de conquistar o da Europa.
Quando os alemães ocupam Paris ele ganha a vida em combates de que sai invariavelmente vencedor. Tem os meios para casar com a namorada Odette, que será a cúmplice de toda a sua vida. O jovem Lino, então com vinte e três anos, quer oferecer-lhe o tipo de conjugalidade que a mãe sempre almejara ter e não conhecera.  Isso explica o pudor face às mulheres com que contracenava: mesmo quando, anos mais tarde, contracenaria com Brigitte Bardot, então no seu fulgor, e com quem teria de aparentar escaldante relação amorosa, pôs como condição que nunca sequer falassem fora dos momentos de rodagem do filme.
Tão-só casado chega de Itália a convocação para se incorporar no exército e assim colocar-se no campo de batalha oposto ao de Odette. A contragosto lá vai, vê-se colocado na frente do Montenegro mas aproveita uma breve licença para desertar, cuidando de voltar a Paris onde, alertada pelos aliados fascistas, a Gestapo o procura. A Libertação de Paris também contém para ele o alívio de retomar uma vida sem restrições. Volta então aos ringues para fazer os primeiros papéis de representação enquanto ídolo de uma das novas modas do pós-guerra: o wrestling.
Foi aí que, quando já contava 34 anos e se tornara preparador dos lutadores desde que uma perna partida o privara de continuar em cena, Jacques Becker o foi descobrir para contracenar com Jean Gabin num filme que viria a constituir um enorme sucesso comercial: «Touchez pas au grisbi» (1954). A amizade com aquele que era, para muitos, o maior ator francês da época, durou até à morte dele.
Nunca mais para a partir daí. Os títulos sucedem-se uns aos outros e, quatro anos depois, ganha o destaque de protagonista em «Le Gorille vous salue bien» de Bernard Borderie.
Na viragem dos anos 50 para a década de 60 entra em «Classé tous les risques» de Claude Sautet, que inaugura uma fileira francesa do «film noir» norte-americano. Ora como homem acossado, obrigado a fugir para salvar a pele, mas desejoso de se fazer respeitar, até ao de polícia apostado em repor a justiça, encadeia sucessivos títulos ao longo da tal década em que Godard, Truffaut e outros jovens realizadores propunham um cinema, que lhe era totalmente alheio e cujos valores não compreendia. Pior ainda, muitos dos seus filmes tinham o argumento, até mesmo a realização de José Giovanni, cujo comportamento durante a Ocupação nazi só conhece quando vai ao seu enterro em Marselha: aquele que se tornara num amigo ainda mais próximo do que Gabin, fora um miliciano colaboracionista, muito ativo na captura de judeus e no assassinato de resistentes. Será que só nesse momento terá sabido que ele fora condenado à morte em 1948, de que escapara por unha negra, sendo amnistiado em 1956, e provavelmente o mataria se o tivesse encontrado nos anos de clandestinidade durante a guerra? Será que um estranho conceito de amizade se sobrepôs aos demais princípios de que se confessava arauto?
Nunca o saberemos mas há a contrapartida de ter tido, igualmente, como outro grande amigo Jacques Brel, com quem compôs um duo divertidíssimo numa comédia de Édouard Molinaro em 1973: «O Chato»., depois de ambos terem integrado o inesquecível grupo de marialvas em «L’aventure c’est l’aventure».
Até à morte por crise cardíaca em 1987, Ventura continuaria a integrar o elenco de muitos filmes, mas perdeu o gosto pelo que fazia. Lia e rejeitava dezenas de argumentos, mas sabia-se em contracorrente com uma sociedade em que se sentia verdadeiramente à parte. Ele que nunca se confessara de esquerda ou de direita vivia os anos Mitterrand como uma espécie de peixe fora da água. E assim se compreende que se tenha consolidado a tal antipatia por ele exprimida e só agora relativamente morigerada, quando a idade já me permite entender melhor o que terá sentido.

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