quinta-feira, janeiro 30, 2020

Diário de Leituras: Nos romances de Modiano o mundo é deveras pequeno!


Por muito que pareça ser mais do mesmo, gosto sempre de ler Modiano. E, a exemplo do que sucedera, com Le Clézio, apreciei bastante que a Academia Sueca o tivesse contemplado com o Nobel em 2014. Porque premiou um estilo inconfundível e um universo narrativo, que possui a sedução dos mistérios radicados em ambientes instáveis, porque povoados de personagens semelhantes a funâmbulos em permanente risco de se despenharem do estreito fio em que se julgam avançar.
«Encre Sympathique», o título mais recente do autor, lançado pela Gallimard no final do ano transato, retoma o seu tema mais constante: há um narrador à procura de alguém, multiplicando encontros casuais em que a investigação vai avançando. Ele é Jean Eyben, que reabre uma pequena pasta com documentos das breves semanas em que trabalhara para a agência Hutte trinta anos atrás. Fora-lhe então destinada a missão de encontrar uma tal Nöelle Lefebvre, que trabalhara nos armazéns Lancel da Praça da Ópera e costumava frequentar uma boîte chamada La Marine.
O insucesso dessa busca marcara-o suficientemente para, espaçadamente nas décadas seguintes, ir acumulando informações sobre alguns homens que a haviam conhecido: um Gérard Mourade, que fora efémero ator de teatro e de cinema, conhecido pela megalomania; um Roger, com quem ela se casara e não conseguia assentar em nenhum emprego; um Sancho, que aparecia em Annecy com o seu descapotável e lhe legara o apelido por que se fazia chamar; Georges Brainos, que tinha um castelo onde passara alguns meses. Às tantas Jean chega a ansiar que a agenda de Nöelle, um dos documentos da pasta, tivesse sido escrito nessa «tinta simpática» do título, invisível durante uns anos, mas depois destacando-se nítida nessas páginas, mais pródigas em perguntas do que em respostas.
Os nomes nela referenciados, presumivelmente secundários, na vida da rapariga, tinham entrado e saído de cena, sem nunca se saber donde tinham emergido e em que exílio acabaram por se fazer esquecidos. Como nunca se chega a perceber do que vivem, porque os negócios ou empregos em que se dizem vinculados, parecem demasiado precários para justificarem um estilo de vida hedonista.
Nas últimas páginas Modiano liberta Eyben do seu papel e confia à omnisciência do leitor o desenlace: acontece em Roma, onde encontra Nöelle e tudo se prepara para que, no dia seguinte àquele em que o romance chega ao fim, ambos partilharão as verdadeiras identidades. Nomeadamente, que afinal essa duradoura procura voltava a juntar aqueles que tinham sido dois adolescentes de Annecy tantas vezes atentos um ao outro, quando apanhavam o mesmo autocarro, ela a voltar para casa depois do emprego de criada num hotel ou num restaurante e ele de regresso ao pensionato onde estava matriculado como aluno interno.
Donde se conclui que, para Modiano, o mundo é pequeno o bastante para que reencontremos quem há muito julgáramos remetidos para as catacumbas da memória.

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