quarta-feira, janeiro 22, 2020

Diário de Leituras: O Passado Obscuro na obra de Patrick Modiano


Vou hoje iniciar a leitura do mais recente romance de Patrick Modiano. O título: «Encre Sympathique». E a certeza de retomar a fruição, que os seus livros me suscitam e me levaram a ficar satisfeitíssimo quando o Nobel o contemplou em 2014, uma vez mais deixando de fora aquele que, anualmente, me dá a satisfação de sempre se ver preterido pelos membros da Academia Sueca.
Agrada-me a atmosfera ambígua onde se enleiam os seus personagens, apostados em alhearem-se das ameaças pendentes sobre as suas cabeças e nas quais pressentimos que acabarão por se perder. E há esse estilo depurado e límpido, que potencia a tensão entre a memória e o esquecimento, o silêncio e a necessidade da palavra. A História parece demasiado confusa para que ganhe um sentido, mas a narrativa acaba por a clarificar. E foi assim, logo no primeiro romance que publicou, «La Place de l’Étoile», que tinha a virtude de deixar em estilhaços uma mistificação muito própria da sociedade francesa até esse anos de 1968: a de que quase todos haviam sido resistentes durante a Ocupação, sendo poucos os colaboracionistas.
Que assim não fora dizem-no os livros de História mais sérios sobre esse período: a maioria da população ficara abúlica perante a presença nazi, e muitos tinham com ela colaborado indecorosamente. Os resistentes rarearam nos dois primeiros anos da guerra só aumentando em número, e em ações de guerrilha, a partir do momento em que os inimigos tinham ficado atolados no inverno russo, quer em Leninegrado, quer em Estalinegrado.
Raymond Queneau, que era amigo da família e lhe servira de mentor junto da Gallimard, considerara escandaloso esse romance em que não faltavam judeus e escritores a venderem a alma ao diabo, enquanto imperavam o mercado negro e os amores ilícitos.
Modiano já nele refletia a sua própria biografia, já que nascera em 1945 como fruto dos amores de uma atriz flamenga, Louisa Colpeyn, com um judeu oriundo de Alexandria, Albert Modiano. Este estranho  pai sobreviveu a toda a Ocupação ao adotar uma dupla identidade quando se vira obrigado a pôr a estrela amarela, que o teria levado a Drancy e daí a Auschwitz. Para escapar a esse destino, entrara para o bando da rua Lauriston, nele revelando os flexíveis talentos para se apropriar do alheio e embolsar os lucros de diversos tráficos.
É algo desse passado turbulento, que conto reencontrar num livro sobre o qual aqui voltarei a escrever...

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