sexta-feira, janeiro 17, 2020

Diário de Leituras: «Líquen» de Alice Munro


Ando nesta altura a visitar com a assiduidade possível os títulos que Alice Munro publicou e se encontram editados entre nós. Ciente de como é difícil a arte de fazer do conto um espaço narrativo capaz de, em poucas palavras, construir um universo atrativo, e admirando Tchekov ou Borges, como dois dos seus mais eficientes cultores, busco na escrita de Munro a aferição da justiça cometida pela Academia Sueca quando lhe atribuiu o Nobel de 2013.
«Líquen», que integra «O Progresso do Amor», tem em David e Stella um par de ex-cônjuges reunidos anualmente pelo ritual de visitarem o pai dela, internado numa casa de repouso.  Enquanto cumprem essa rotina Catherine, a atual companheira dele, espera-os na casa em que Stella continua a viver à beira-mar. Mas o triângulo amoroso tende a transformar-se num quadrilátero, porque David revela à ex a fotografia da desnudada Dina num polaroide, nela detetando-se entre as pernas a escura revelação do que a Stella lembra o líquen.
Está definido o momento em que eles vivem: a David enfastia o corpo gordo e envelhecido da mulher com quem vivera vinte e um anos ou o vegetarianismo de Catherine em quem já só vê defeitos. Mas angustia-se com o silêncio da nova conquista, quando lhe telefona, temeroso de que ela, com um terço da idade de Stella e metade da que tem a ainda atual companheira, o ande a trair com outro. Na figura patética de um velho Don Juan, que pinta o cabelo para disfarçar os efeitos da idade, ele é o adolescente imaturo que nunca cresceu e sempre andará de mulher em mulher em busca de algo, que nunca será capaz de sentir.
Não imagina que, mais rapidamente do que julgaria possível, pode ser Catherine a antecipar-se na rutura, porque as horas passadas na praia a olhar o mar lhe fizeram crescer a tentação de uma reinvenção de si mesma. Tanto mais que compreende quanto David a desconhece, mesmo que o saibamos através de Stella ao constatar quão diferente ela é em relação ao que ele a desqualificara: não só come carne, como não se interessa por horóscopos e até assina os jornais para conhecer o mundo à sua volta.
Ao dar uma arrumação à casa na semana seguinte, Stella - que trata David com a complacência de uma mãe, que tudo desculpa - encontra a descolorida fotografia de Dina e constata quão ajustada ficara até aquela primeira impressão do líquen aí presente. E logo muda de pensamento, porque é da reunião com a Sociedade de História local, ali prestes a organizar-se, que melhor fará uso dos neurónios.

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