terça-feira, janeiro 14, 2020

Diário de Leituras: «O Universo num grão de areia» de Mia Couto



A próxima celebração, que farei a pretexto do Prémio Nobel, acontecerá quando Mia Couto tiver a distinção merecida muito justamente por José Saramago, tornando-se no primeiro africano de língua portuguesa a alcança-la. De preferência enquanto o Invejoso for vivo e continuar a remoer a fúria de dele sempre se esquecerem.

Aprecio imenso a prosa do escritor moçambicano, mesmo nos livros de mais curta ambição como é o caso deste, cuja leitura estou prestes a concluir.  Porque, mesmo tratando-se de uma coletânea de textos com os seus discursos e artigos de imprensa motivados pelas mais diversas circunstâncias, encontram-se pequenas pérolas demonstrativas de uma grande sabedoria. A começar pelo conselho que, às tantas dá, para escusarmo-nos à apresentação de um qualquer livro: “Um livro não se apresenta. Um bom livro é um assunto de mistérios e de paixão. Eas paixões não se apresentam. Cada um vive a sua, á sua maneira. “ (pág. 116)
Por uma vez não lhe sigo o conselho, porque motiva-me a vontade de partilhar alguns desses momentos jubilatórios em que umas quantas frases me fizeram interromper o fluxo da descoberta das palavras para sobre elas me deter uns momentos e reconhecer-lhes essa tal sabedoria de quem já muito viveu e mais aprendeu, até mesmo nos seus paradoxos: “O percurso da minha vida fez de mim uma criatura de múltiplas fronteiras. Sou um africano filho de europeus. Sou um escritor numa nação que vive na oralidade. Sou um poeta que trabalha como cientista, sou um ateu numa sociedade profundamente religiosa.” (pág. 193)
Essa aprendizagem decorreu até do que vivenciou nestas décadas de independência de Moçambique, razão para alguns contentamentos, mas também de muitos desencantos. Porque, perfeita ilustração de tudo quanto se tem passado no continente em que se situa, o país não tem escapado a uma tragédia de culpas bem óbvias: “A mãe África é (...) uma mãe solteira. Desejada, esquecida, seduzida, mas sempre vista como carente de marido, sustentada por uns, abandonada por outros. A maior parte das vezes mal-amada, traída, violentada. Quem a maltratou foram, quase sempre, os «outros». Contudo, ninguém a ofendeu tanto quanto os próprios africanos que se alimentam com os restos do passado e negaram ao seu continente as portas do futuro.” (pág. 75)
África também tem sido a fonte de todas as histórias e experiências, que lhe têm alimentado a vocação literária, através dos romances prodigiosos delas extraídas. Porque, se os políticos dos tempos coloniais e os dos que se seguiram à independência nunca se mostraram à altura das necessidades de quem ali viveu, vive e viverá, nunca falta essa extrema necessidade em tudo explicar e narrar de acordo com as crenças e imaginação de quem procura um sentido para quanto vê e (pres)sente: “A humanidade nasceu em África. Mas podemos também dizer que a humanidade nasceu da capacidade de produzirmos e contarmos histórias. Somos humanos exatamente porque não somos apenas uma entidade biológica. Somos feitos de histórias tanto como somos compostos de células. As histórias são também um lugar onde nos inventamos eternos e encantados!” (pág. 86)
E existem também as memórias, as que nunca se renderão às vicissitudes do tempo e deixarão cristalizados os instantes para sempre conservados como sendo os que construíram a identidade: “Não existe o lugar da infância, a infância é ela mesmo um lugar, um eterno terreiro em infinito palco cénico.  A casa onde nasci não será nunca uma ruína. Porque ela é feita de vozes e sombras, uma cortina que balança no escuro, um lençol que ondeia na luz.” (pág. 107)
No presente deteta-se no autor o enfado com quem manda na governação, na comunicação, na produção de ideias ou de um arremedo de cultura. Porque, coletivamente perdida a vontade de tudo questionar, ficou a intenção de só validar o que não incomode, não perturbe, não espicace a tentação de sonhar: “O limite maior do nosso pensamento é o pensamento estabelecido. O principal obstáculo para a produção de novas ideias são as ideias que se tornaram certezas. A maioria dessas ideias não são nossas nem são do nosso tempo. Quando pensamos ter ideias, a maior parte das vezes são as ideias que nos têm a nós” (pág. 177)
Daí que Mia Couto lança um alerta que não serve apenas para os moçambicanos, porque também noutras latitudes, incluindo a nossa, se pode enfiar a mesma carapuça!:“Vivemos afinal na mais grave das prisões: aquela em que o prisioneiro não sabe da existência de grades” (pág. 190)

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