A questão da existência ou não de Deus pôs-se-me muito cedo apesar de ter nascido numa família assumidamente católica, que fazia peregrinações frequentes a Fátima.
Onde terá começado o meu distanciamento da religião, não o sei precisar com rigor. Talvez porque ainda andava na escola primária e já achava mais interessante ficar em casa ao sábado ao fim da tarde a ver os episódios do Robin dos Bosques - era a época em que ainda só existia um canal a preto e branco e os únicos dias da semana em que as emissões começavam mais cedo eram ao sábado e ao domingo - do que em frequentar as aulas de catequese na Igreja que ficava em frente à minha casa.
O entusiasmo com as atividades clericais só ressurgia, quando um seminarista, que apoiava o padre local, organizava jogos no campo de futebol, que ficava perto da escola ou nas tardes de apresentação dos filmes do Charlot.
Nessa altura a minha atitude era similar à dos anarquistas espanhóis dos anos 70, que afixavam nas paredes a inscrição: “se Deus existe, o problema é dele”.
Quando cheguei aos primeiros anos do liceu apanhei com o padre Sobral e, a exemplo de muitos outros alunos do liceu de Almada, logo me rendi à sua mundividência: a guerra era injusta, porque África não nos pertencia. Quem mandava no país fazia-o de forma mais do que criticável, porque não deixava as pessoas pensar pelas suas cabeças nem expressarem o que lhes ia na alma. E quanto à questão de Deus ficava arrumada de vez a ideia totalitária de ser alguém muito poderoso que lá dos céus espreitava para tudo quanto fazíamos para nos punir com o Inferno ou, por exceção, nos dar uma hipótese de acesso ao Paraíso.
Os astronautas, que começavam a alcançar a órbita terrestre, não davam notícia de lá terem encontrado quem quer que fosse!
Inaugurava, então, o meu período agnóstico, de aceitação de uma certa transcendência, que estaria na origem do universo e dos seres vivos e funcionava de acordo com leis universais consagradas na própria ciência.
Não posso, igualmente situar por quanto tempo durou até por ter feito de passagem uma breve incursão pelos terrenos do budismo.
Sei que cheguei ateu à vida adulta e decidido a sê-lo até prova em contrário, ou seja deixando aberta uma porta para a possibilidade de, mesmo tardiamente, me suceder algo parecido ao João Barois, o protagonista do romance de Roger Martin du Gard que se reconvertia ao catolicismo in extremis, quando a morte lhe surgia como limite tangível às explicações científicas tão do seu agrado.
Mas o recém-publicado ensaio «Le Code de la Conscience» do francês Stanislas Dehaene constitui mais um tijolo solidamente implantado na robusta parede desse meu ateísmo. Porque se tendemos a olhar para a nossa consciência como algo de identitário, que não se pode resumir à atividade das nossas células cinzentas, o livro do professor do College de France depressa nos demonstra o contrário: a ressonância magnética já permite seguir o fluxo contínuo das informações, que chegam ao cérebro e como elas são triadas entre o consciente e o inconsciente.
Na grande maioria, o cérebro realiza operações inconscientes sem necessitar que as controlemos.
O acesso à consciência é um acontecimento tardio, que só acontece pelo menos 1/3 de segundo depois do correspondente estímulo exterior
É o cérebro quem decide se certas informações apresentam ou não um interesse maior: são elas que transitam para aquilo que o autor designa como «espaço neuronal global», uma vasta rede de neurónios situados principalmente nas regiões frontais e parietais do cérebro e dotadas de ligações - os axónios - que podem ser extremamente longos para fazerem circular informação entre pontos muito afastados do cérebro.
Quando ocorre a tomada de consciência a mensagem, até aí confinada a um circuito especializado, fica disponível para as várias zonas cerebrais, que se põem a comunicar e a codifica-la de acordo com as respetivas especificidades.
Aquilo a que chamamos «tomar consciência», mais não é do que canalizar a informação para o espaço de trabalho onde ela se tornará estável e coerente.
Temos, pois, um livro, que reabilita a consciência para o campo das neurociências. Para Stanislas Dehaene a consciência fabrica um campo percetivo unificado em três níveis:
- a consciência percetiva , que nos dá acesso a determinados aspetos da vida exterior;
- a metacognição, que é a capacidade para distinguir o que sabemos do que ignoramos;
-a consciência de si mesmo, que abarca a reconstrução coerente das nossas decisões e pensamentos.
Numa primeira fase as neurociências interessaram-se pelo que era comum entre os indivíduos, mas orienta-se cada vez mais para a sua singularidade. A história do indivíduo inscreve-se nas sinapses e quando tomamos uma qualquer decisão a escolha reflete apenas os sistemas de valores inscritos na biologia do cérebro.
A nossa responsabilidade é o resultado de uma maquinaria cerebral herdada da evolução e que contém alguns aspetos indesejáveis sujeitos a correção pela educação, pela cultura ou pela mera legalidade social.
Em suma, o cérebro é uma máquina magnífica mas falível… e nada tem a ver com qualquer Deus!
(texto redigido com base num debate entre Stanislas Dehaene e Catherine Malabou refletido nas páginas da revista«L’Obs»)
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