sábado, maio 26, 2018

(DL) «Quando as girafas baixam o pescoço» de Sandro William Junqueira (2017)


No próximo dia 30 o convidado do LAL, iniciativa mensal da Associação Gandaia, organizada e liderada pelo António Fonseca para propiciar o encontro de escritores com os seus leitores a propósito de um seu livro recente, terá Sandro William Junqueira como convidado. Lançado no ano transato, «Quando as girafas baixam o pescoço» faz-nos lembrar a conhecida frase do «Inferno» de Dante  - «Oh vós que entrais, abandonai toda a esperança!» - com uma diferença: em duas exceções (e sê-lo-ão de facto?) todas as personagens vivem no seu inferno pessoal e social, mas já nele terão nascido, nunca tendo encontrado a porta de saída de escapatória para purgatórios mais aconchegados.
De início temos um Velho a sair do Lote 19 para lançar sementes de roseiras no buraco já escavado ao lado do prédio e onde um empreiteiro conta «plantar» um lote 18. Dadas as circunstâncias sabemos inglório esse esforço, que não consegue travar a entropia causadora da infelicidade coletiva: "Lá fora, as gruas e as outras máquinas controladas por comandos insistem no barulho de erguer mais um edifício legal e, assim, contribuir para a desordem". Os meses seguintes confirmam essa impotência quixotesca: acossado por forças, que não consegue contrariar, o Velho dorme com uma pistola debaixo da almofada e até procura sair do bairro, quando vê os vizinhos sabotarem-lhe o pequeno gesto subversivo ao urinarem-lhe no canteiro semeado. Debalde, porque as fronteiras são tão intransponíveis, que nem sequer consegue vislumbrar uma miragem redentora fora delas. Sem surpresa acabará por matar-se no efémero viveiro de rosas, que sabe  em breve destruído pelo avançar das máquinas.
Além do Velho, todos os demais habitantes desse Lote 19, ou dos que vivem nas proximidades, estão enclausurados num limbo sem fuga possível. Existem duas irmãs idosas, que vivem com o gato, uma designada como Quieta e a outra como Móvel, mas mesmo esta parece não arriscar-se além da porta do apartamento. Há um Profeta, um sem abrigo com evidente desequilíbrio mental, que costuma subir para cima de um caixote para perorar sobre Apocalipses, prometendo a salvação para quem o ouvir e “fodendo-se quem o desprezar”. Mesmo um personagem mais jovem como o Adolescente Musculado não aposta voos mais alargados, constrangido pelas obsessões sexuais, que quando carecem ser satisfeitas, o levam a apenas galgar dois lanços de escadas para ir ao encontro da Mulher dos Lábios Vermelhos. Outra possibilidade salvífica poderia ser a do Homem  Exemplarmente Vestido por ser aquele que enceta um negócio prometedor: a criação de um espetáculo de aves canoras que, concluída cada uma das suas exibições, caem mortas de exaustão e de fome. Mas ele apenas para aqui é convocado para ligar esses seus crimes praticados sobre tão indefesos animais - também eles fechados nos seus «lotes 19» - àquele que irá testemunhar mais adiante e que constitui um dos dois episódios de cariz policial, que confirmam a existência latente de uma violência assassina neste tipo de bairros suburbanos.
Alternativa potencial também poderiam ser os cães, porquanto Sandro William Junqueira confere-lhes a capacidade de sobreporem a sua vontade à dos donos: “levam os homens não castrados em passeio e trazem-nos de regresso a casa.” Mas também eles não vão mais além do que a distância para que foram programados.
A evidência vai sendo reiterada sem que seja possível qualquer resgate: na página 79 proclama-se que   "a vida tem dentes e morde. É carnívora". E é-o de uma crueldade desmedida para o Homem Desempregado, já desinteressado dos seus livros de filosofia, que começamos por ver desalentado pela opção de escolher entre ter luz ou gás para cozer as três batatas que lhe restam. Quando, mais tarde, já nada tem para lhe mitigar a fome, procura enganá-la ao folhear livros de culinária ou passeando o tédio cuidando não pisar as fezes, que foi deixando caoticamente nas salas vazias. Menos excessivo, o Pai é também personagem em sofrimento não só por faltar-lhe o azeite com que tempere as iscas com que alimentará o Filho, e a quem inventa histórias para lhe decorar a infância. Ao contrário do vizinho ainda lhe resta a capacidade de sonhar, pelo menos com a Mulher dos Lábios Vermelhos por lhe adivinhar “aromas desconhecidos”.
O Amor poderia ser, de facto, a janela aberta e iluminada, que compensasse tanta inquietação e sofrimento. Mas a Mulher Gorda, que anota pensamentos no bloco de notas para ordenar a desarrumação dos pensamentos, vive no terror do regresso iminente de quem tanto a agredira em episódios dolorosos de violência doméstica. A filha, a Rapariga Magra, que sente um evidente rancor pela mãe, alimenta fantasmas de gangbangs enquanto aprofunda a anorexia, que a obrigará a internamento coercivo noutra prisão, a do hospital. O Homem que Gosta de Livros bem seria tentado pelo rapaz da tatuagem, que lê um romance no elétrico, mas não tem coragem para mais do que um breve e involuntário sinal de interesse, voltando para casa e para a companheira que, farta do seu desapreço, acabará por o deixar. As duas irmãs russas, Cátia e Katia, que trabalham nas retrosarias do bairro e estão ligadas por enfeitiçada maldição, vivem aprisionadas num triângulo amoroso concluído dramaticamente - será um dos homicídios do livro! - por intervenção vingativa de uma delas. O outro assassinato, o da mulher de Teo, que assim se livrou da frustração de por ela ser continuamente desconsiderado, é outra demonstração de como as relações conjugais em ambientes suburbanos são frequentemente ditadas pela brutalidade.
Lavrando possível paliativo para a tal desesperança dantesca, que percorre todas as páginas, resta-nos alguma expetativa em duas personagens femininas: Vera, que engravidou de um mariola conhecido no elétrico e dotado para lhe lançar aos ouvidos a canção do bandido, e decidida no final a dele desistir para se concentrar na nova vida, que lhe cresce no ventre. E a já referida Mulher dos Lábios Vermelhos, apostada em abandonar a prostituição para se concentrar no papel de cuidadora do bebé chimpanzé, que apareceu abandonado no bairro. Fica, pois, a conclusão final que, a haver alguma saída para a amargura a da maternidade parece ser a mais prometedora.

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