terça-feira, maio 22, 2018

(DL) O legado indispensável de Simone de Beauvoir


Uma das notícias com impacto nos meios literários franceses das últimas semanas foi a tardia consagração da escritora Simone de Beauvoir, enfim entrada na prestigiada coleção da Pleiade através das suas Memórias. Romancista e teórica do feminismo, reconhece-se-lhe a permanente luta pela liberdade e busca da verdade, à custa de violentos ostracismos e agressões.
Nascida em 1908 numa família burguesa, que lhe proporcionou uma infância feliz, viu o pai falir quando tinha oito anos, alterando-se-lhe subsequentemente a qualidade de vida até então usufruída. O futuro ficaria tão condicionado, que lhe seria vedado aquele que, comummente, era o das meninas da sua classe social: tornarem-se prendadas para virem a ser esposas irrepreensíveis de pretendentes bem colocados socialmente. Não podendo garantir-lhe um dote, que a configurasse como uma noiva apetecível, o pai insistiu para que estudasse e conseguisse por si mesma vir a sustentar-se. Segundo as suas palavras a filha Simone teria “cérebro de homem”. Essa lição precoce levá-la-ia a sempre defender que a emancipação feminina passaria obrigatoriamente por cada mulher alcançar liberdade económica relativamente ao conjugue ou parceiro.
Descobriu a Literatura com maiúscula, quando tinha 16 ou 17 anos, ao ler André Gide e Marcel Proust, sentindo que o exercício da leitura não se assemelharia à visita de um museu ou de um monumento, antes estimulando o questionamento do seu âmago e alimentando o prazer de viver. Os livros transformá-la-iam em quem viria a ser.
Aos 21 anos conheceu Jean Paul Sartre a quem se ligou até ao fim dos seus dias apesar de ambos experimentarem relações amorosas com outros parceiros, que não punham em causa a relação cúmplice que sempre mantiveram. Nelson Aigren, um dos seus mais duradouros amantes, insistiu em que se casassem, mas ela sempre recusou tal hipótese por descrer nos benefícios da instituição conjugal. Mais polémica foi a relação íntima com uma das suas alunas no Liceu Molière, que redundou no seu despedimento com o correspondente escândalo à mistura. A irrupção imediata da Segunda Guerra acabou, porém, por secundarizar esse episódio.
Em 1949 publicou «O Segundo Sexo» onde inseriu a conhecida fórmula: “não se nasce mulher, torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, económico define a fêmea humana na sociedade.” Contra uma tão veemente proposta de libertação das mulheres dos constrangimentos de uma sociedade patriarcal e perante a poderosa defesa da igualdade entre géneros, levantaram-se alguns dos intelectuais conservadores do pós-guerra, que consideram o livro abjeto, com destaque para François Mauriac e Albert Camus. Este último denunciou-se na verdadeira natureza do seu pensamento, apesar de, ainda hoje, continuar a ser incensado por uns quantos autoproclamados progressistas, que lhe devotam uma admiração elucidativa quanto ao seu presente alinhamento ideológico.
O ensaio em causa impô-la como um dos principais vultos intelectuais do feminismo, condição que  reiteraria já no início dos anos setenta, quando foi uma das mais notórias subscritoras do Manifesto das 343 que, confessando ter desrespeitado a lei abortando, exigiam que esse direito passasse a ser reconhecido como legítimo, algo que logo viria a verificar-se.
Quando, aos 78 anos, morreu em Paris, ela deixou um legado de indubitável importância sintetizado nestas palavras crepusculares: “Não quis casar, nem ter filhos. Não quis ter uma ‘vida interior’, que costuma ser a pior ameaça contra a condição feminina. Tinha escapado a diversas servidões. (...) Para cada mulher é a história da sua vida, em particular a da infância, que a determina como mulher, que nela cria algo que não chega a ser uma essência e que se designa por ‘eterno feminino’ ou ‘feminilidade’. (...) Eu constatei a verdade sobre a condição feminina. E consegui-o durante a escrita de «O Segundo Sexo». É um trabalho militante e satisfaz-me que tenha sido utilizado por militantes, porque tem esse objetivo. Mesmo que, na altura de o escrever, não tenha tido disso consciência”.
Importa concluir que a Pleiade não conta inserir esta obra fundamental do século XX nas suas coleções...



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