domingo, maio 06, 2018

(DIM) «Silêncio» de Martin Scorcese (2016)


Uma das mais gratas recordações, que guardo do Japão, aconteceu numa pequena cidade costeira, Miike, onde o «Fernando Pessoa» aportou há cerca de vinte anos. Logo à chegada esperava-nos inesperada comitiva composta pelo Presidente da Câmara, pelo Diretor do Museu local e outras autoridades a que logo fomos apresentados. O que os trazia ao nosso encontro era a profunda admiração pelo legado dos portugueses naquela região, quando por ela haviam passado no século XVII, e com evidências documentais no edifício de exposições para que fomos convidados.
A estadia em Miike revelou-se bastante agradável, porque os nossos anfitriões não se pouparam a esforços para nos receberem como descendentes daquele povo estranho, que lhes trouxera a modernidade, seja na linguagem (o “arigatô” como um dos muitos exemplos possíveis dessa duradoura influência), na gastronomia (mormente no pão-de-ló) ou na discutível, mas muito relevante introdução das armas de fogo.
Quer isto dizer que a receção, que ali tivemos foi diametralmente oposta à conhecida pelos padres Rodrigues ou Garrupe, quando ali haviam chegado em 1633 para confirmarem se os boatos sobre a abjuração do seu idolatrado mestre, o padre Ferreira, tinham alguma coincidência com a verdade.
O filme de Scorcese revela um Japão, que se decidira fechar sobre si mesmo, livrando-se da influência dos jesuítas, que haviam conseguido a conversão de dezenas de milhares de camponeses e pescadores, entretanto perseguidos pelas autoridades com a mesma determinação com que, por essa mesma altura, os inquisidores ibéricos cuidavam dos judeus e dos cristãos-novos.
O que incomoda no filme de Scorcese não é a beatice de Scorcese, que aqui é bem mais evidente do que noutros títulos maiores da sua filmografia, onde a sugestão do martírio crístico não deixa de estar presente. É antes a justificação encontrada para renegar tudo em que se possa acreditar, tornando-se prioritária a sobrevivência relativamente à preservação do que fora tida como uma indissociável parte de si. No fundo, embora passado num tempo e numa cultura diferente, o filme relaciona-se com questões ainda bem recentes, como o do tipo de comportamento a assumir perante a polícia política numa situação totalitária. Incorrer no risco do martírio corajoso ou render-se à cobardia de trair tudo quanto se foi? Ou ainda sobre a responsabilidade do líder perante quem a tal o promovera, tema primorosamente tratado num dos primeiros filmes de Bertolucci («A Estratégia da Aranha») em que Athos Magnani assumia a complexidade contraditória de, com a sua rendição, ver-se potenciado como herói mobilizador.
Mas esta abordagem sobre a renúncia de quem se foi lembra igualmente outro exemplo, que nunca é de mais lembrar: o de Elia Kazan, que denunciou todos os amigos comunistas à Comissão do senador McCarthy e andou depois, anos a fio, a justificar o gesto crápula em filmes, que alguns estimam como obras-primas («Há Lodo no Cais», por exemplo) e mais não foram do que torpes pretextos de autodesculpabilização.
O rosto torturado de Rodrigues no final do filme recorda essa contrição sem possibilidades de vir a ser perdoada por quem, da sua vilania, terá sofrido as amargas consequências.


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