quarta-feira, maio 02, 2018

(DL) «Um Ano» de Jean Échenoz


É o mais comum nos romances de Jean Échenoz: por muito que circunstâncias extraordinárias neles incidam quase nunca saem do registo imperturbável, adaptando-se o melhor possível - mesmo que com inaudito sofrimento! - às agruras por que passam.
Para Victoire tudo desabara no dia em que acordara e dera com o cadáver de Félix a seu lado. Sem se ater quanto ao que causara tal desenlace, foge o mais rapidamente dali, contando com a cumplicidade de Louis Phillipe, o amigo disposto a mantê-la ao corrente do que a polícia iria apurando. Passando pelo banco para arrebanhar as economias vai à gare de Montparnasse e apanha o comboio, que a possa levar para o mais longe possível que, no caso, será Saint Jean de Luz junto à fronteira espanhola.
Durante umas semanas instala-se numa casa, que aluga à beira-mar, escusando-se a grandes contactos com os vizinhos. Aparece-lhe de vez em quando, Louis Philippe a recomendar-lhe que por ali se mantenha apesar de nada indiciar o interesse da polícia em ouvi-la. Quando, enfim, decide socializar-se arranja breve amante, que  logo desaparece levando-lhe todas as economias.
O que se seguirá é a queda progressiva de Victoire no abismo da indigência, primeiro buscando a sobrevivência por si mesma, depois juntando-se a pequenos grupos de outros sem abrigo, com quem partilha esforços para, com pequenos roubos ou o respigar dos lixos alheios, ir garantindo a relativa satisfação das carências mais básicas. Mas a rapariga jovem e apresentável, que partira de país, depressa ganha aspeto desleixado, que impossibilita o recurso à prostituição como modo de vida e dificulta a obtenção de boleias para o seu ziguezagueante cirandar.
À medida que lhe acompanhamos esse andar à toa, sem estratégia, nem sítio fixo para onde se decida apontar, vai-nos surpreendendo a facilidade com que Louis-Philippe a vai encontrando aqui e além, sempre incentivando-a a prosseguir essa fuga sem nexo. Até que passa um ano e ele a conforta com o encerramento do caso e a possibilidade do regresso a Paris.
Ela assim faz e acolhe-se em casa de um amigo de uma sua conhecida do passado.  Um dia, num café, reencontra Félix com a nova namorada. Por ele fica a saber o quanto o deixara espantado com o seu inexplicado desaparecimento. E que atribuíra à inesperada morte de Louis-Philippe nessa mesma altura.
É forçoso fecharmos o livro com a conclusão de termos andado todo o tempo iludidos: Victoire criara em si uma realidade alternativa à que todos os demais haviam percecionado, trazendo consigo a presença latente desse fantasma cuja importância afetiva no passado fica-nos sempre por explicar.
Em 1997, com este pequeno romance - quase novela - Échenoz ilustrava o seu estilo próprio, feito de estórias bem contadas sobre pessoas confrontadas com dilemas íntimos, incentivadas a considerações distorcidas de tudo quanto passavam a testemunhar.

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