segunda-feira, maio 28, 2018

(DL) «Mãe Solidão» de Maria Alzira Cabral (2012)


«Um Deus de Pés Descalços» é o mais recente romance de Maria Alzira Cabral, que será lançado no dia 8 de junho na Biblioteca Orlando Ribeiro em Telheiras. Sem prejuízo de o virmos então a abordar, é oportuno analisar o romance anterior, «Mãe Solidão», que ajudará a melhor entende-lo e contextualiza-lo.
Comecemos então pela conhecida frase, que Lev Tolstoi inseriu na sua «Anna Karenina», segundo a qual as famílias felizes parecem-se todas umas com as outras, enquanto as infelizes o são à sua maneira. Foi ela que me ocorreu como mais óbvia ao acompanhar as vicissitudes por que passa a família Serrano em décadas marcadas pela dor, mas também pela iniquidade na distribuição dos afetos. Em contraponto surgem, igualmente, duas famílias desfavorecidas, a dos Cobres e a da Nelinha, mais preocupados com a sobrevivência imediata do que com a complexidade das relações entre os seus membros. Uns e outros permitem generalizar á escala de toda a sociedade uma realidade feita de injustiças e desigualdades, de emoções incontidas para as quais não se abrem racionalidades, que melhor lhes limitassem o sofrimento.
De início encontramos Eduardo Serrano em Lisboa no ano de 1981, quando passa cinco noites e quatro dias num quarto de hotel, entregando-se à bebida com o desespero de quem nada de bom pode esperar da vida. Frustrava nesse autoabandono a derradeira tentativa do pai para lhe consertar o destino, arranjando-lhe emprego mediante o pedido a um amigo, junto de quem o filho nem sequer se aproximara. Manifestamente a opção de o afastar do Porto não constituíra paliativo para a sucessão de fracassos pessoais e profissionais, que ele vinha acumulando. Por isso restava-lhe meter-se a caminho com o motorista para pagar o desvario do filho e trazê-lo de volta, mesmo que vedando-lhe o acesso ao ninho familiar, porque lhe importava poupar a mulher, Maria do Carmo, a tão clamoroso fracasso. Mas cedo nos é dada a chave explicativa para o comportamento de Eduardo: logo na página 16 ele afirma “eu nunca existi para a minha mãe”.
Em sucessivos flash backs, enquanto a viagem de regresso ao Porto se consuma, iremos confirmar a importância decisiva que o desamor materno teve num comportamento logo definido como marcado por “uma carreira promissora, cortada por uma ambição desmedida e sem sentido” (pág.17).
Paralelamente a essa família abastada, a escritora dá-nos a conhecer a de uma vendedeira de flores à porta de um cemitério, que encontrou expediente imaginativo para melhor garantir o sustento da filha e dos netos, já que o genro, o Enguiça, é um madraço mulherengo, que vende droga para não ter de trabalhar. Nelinha é uma mulher forte da estirpe daquelas personagens, que facilmente associaríamos a Anna Magnani, se imaginássemos o romance vertido para cinema. Sobretudo, porque a sua vida pede meças às piores agruras por que costumavam passar as personagens do cinema neorrealista italiano do pós-guerra.
O elo entre esse mundo abastado e o humilde opera-se nessa mesma Nelinha que, apesar de endurecida pelas carências nunca satisfeitas, não deixa de manifestar uma feminina solidariedade com Maria do Carmo, que sabe ter perdido dois filhos em circunstâncias trágicas e vê frequentar amiúde o cemitério para lhes visitar as sepulturas. Se tínhamos dúvidas resolvia-se qualquer suspeita de juízos maniqueístas relativamente aos  personagens entretanto conhecidos, todos eles tendo as suas razões para reagirem tal qual se nos vão desvendando. Nomeadamente como nesse momento decisivo do seu acidentado percurso, quando Eduardo vê a mãe indiferente á sua alegria na cerimónia da bênção das pastas pela qual se consagrava a sua licenciatura. A noite de embriaguez num bordel, onde causa tais desacatos, que António Serrano será convocado a pagar os estragos, já prenuncia a deriva de excessos, que será a sua num futuro não muito distante. Se bem que a acalmia enganadora ocorra com o primeiro emprego numa empresa exportadora de mobiliário em Paços de Ferreira e o casamento com Maria do Rosário, também ela pertencente a uma das mais emblemáticas famílias da cidade. O nascimento da filha, Alice, poderia ter sido a resposta para o permanente recalcamento em que Eduardo vive, sentindo no pai um rival, que consegue o ascendente junto da mãe, que ele, na sua quase incestuosa atração, não consegue sequer replicar. Dessa não confessada rivalidade surgirá a tão brusca queda nos abismos, quanto rápida parecera a ascensão a patamares de afirmação social: ao projetar manobra desleal para com o patrão - amigo do pai e dos sogros - que lhe garantira emprego de prestigio, Eduardo ver-se-á condenado a irreversível ostracismo junto da elite que até então integrara. Compreende-se assim a falhada tentativa de António Serrano em garantir-lhe um recomeço em Lisboa, tão esgotadas estavam as suas oportunidades de sucesso na cidade natal.
Num romance que evoluirá em três atos, o primeiro conclui-se com Nelinha a livrar-se do genro, oportunamente preso pelas suas atividades delinquentes e Maria do Carmo a contas com as recordações da mãe e da avó, ambas mortas precocemente com doença que ela própria teme herdar, mas sobretudo revivendo os filhos perdidos, quando eram ainda crianças e para sempre permaneceriam os seus preferidos em detrimento dos que lhes haviam sobrevivido.
Dois anos depois os receios confirmam-se: o médico anuncia a António a rápida progressão do cancro, que em breve lhe levará a esposa a quem sempre muito amara por muito que o fizesse sofrer com o distanciamento imposto a Eduardo, culpado da morte do primogénito num acidente com a arma de caça, quando tinha sete anos. Por muito que António e a própria Maria do Carmo se penalizem pela negligência de não terem mantido fechada à chave a sala onde as armas estavam guardadas, a mãe de Eduardo não se enganara na intuitiva suspeita de ter havido no gesto dele uma intenção homicida já explicada pela desigualdade de afetos de que se sentia brindado relativamente a José. Apesar de ainda ter tempo de se despedir da filha, Cristina, a quem manifestara insuficiente amor maternal, nem mesmo nesse desiderato iminente, Maria do Carmo aceita rever quem para ela nunca mais deixou de ser o assassino do seu filho preferido.
Os anos passam, Eduardo vai vegetando num emprego medíocre, que detesta, mas lhe paga o álcool consumido em excesso, retomando-se um novo elo com a história paralela da família de Nelinha, porquanto arrenda a casa que a filha desta e a respetiva sócia no negócio da venda de flores conseguiram concretizar.
Numa narrativa muito visual, Maria Cabral cria-nos o suspense no relato paralelo do parto de Rosa Cobres, uma das senhorias de Eduardo, e o seu efetivo renascer ao ver-se salvo in extremis pelo pai, quando se dispunha a pôr fim aos dias. Sobretudo, porque ele lhe vai apresentar quem verdadeiramente poderá amar como nunca até então julgara possível: a filha, Alice que, aos oito anos, muito se assemelha à avó Maria do Carmo.
Conclui-se, pois, que se os afetos são muito mais complexos na burguesia do que nas famílias mais pobres, a felicidade e autoestima convergem socialmente no equilíbrio entre a capacidade de amar e a de se fazer amado.
Nos antípodas da literatura light, que também costuma fazer da família seu tema de eleição, Maria Alzira Cabral revela-nos a dialética de dois mundos que se tocam, mas em tudo dissemelhantes nos modos e meios de expressarem os sentimentos.

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