quinta-feira, maio 17, 2018

(DIM) «De Tanto Bater o meu Coração Parou» de Jacques Audiard (2005)


É a história de um regresso à vida, da redenção de um homem confrontado com a loucura do mundo exterior e com a sua própria brutalidade. É também a história de um homem  que se torna adulto. E como esse tipo de situação engendram dialética entre contrários o filme alternará entre estados reativos bipolares, porque o protagonista estará dividido entre um mundo belo, sério e artístico, e  um outro, horrível, sujo, feito de negócios escuros. O ritmo das sequências ora funciona à base de calmantes, ora de estimulantes.
Remake de um filme norte-americano dirigido por James Toback em 1978 - «Fingers» -, que tinha Harvey Keitel como protagonista, as opções de Audiard e do seu coargumentista acabam por ser muito diferentes da desse antecessor de culto, ainda assim de pouca valia cinematográfica. Inicia-se com planos fechados, cortes rápidos, diálogos insanos e tagarelas. A câmara ao ombro segue Thomas nas ações crapulosas de expulsar sem abrigo e refugiados das casas que quer negociar. Aos 28 anos há algo de mafiosa violência na forma como gere os negócios não hesitando em colocar ratos num prédio, que pretende desvalorizar para vir a ter com ele maior lucro ou agredindo sem escrúpulos os que com ele estão endividados.
Entramos num universo violento em que os fortes não mostram qualquer compaixão com os mais fracos, sujeitos a uma odiosa brutalidade. Autista em relação aos outros, Thomas ouve música eletrónica e usa um capacete que de tudo à volta o isola. É um mundo niilista  habitado por pobres e oportunistas, por fracassados e estrangeiros, sobretudo por gente desiludida sem luz ao fundo do túnel para os seus vazios existenciais.
Um encontro inesperado abre a Tom a possibilidade de reatar com uma outra realidade, que era a sua enquanto a mãe vivera até dez anos atrás. Conhecera-se-lhe talento musical e abre-se-lhe a oportunidade para uma audição, que volte a franquear-lhe as portas para essa alternativa. O filme muda de ritmo, acalma em planos mais abertos e demorados, porque ele inicia a preparação para esse exame com uma professora asiática, que não fala francês. Que importa se a música se torna no seu elo de comunicação? Cada nota representa uma palavra, cada timbre um estado emocional. Está assim lançada essa tal dialética entre o ser-se uma coisa e aspirar-se a uma identidade totalmente diferente.
Houve, porém, quem não apreciasse o desenvolvimento desta ideia da redenção pela arte, tornada linguagem de cumplicidade entre quem não se entendia e antítese de uma barbárie que se teria tornado a imagem de marca da civilização do novo milénio. Nessa abordagem depreciativa critica-se a Audiard a ambição de dar a uma história ao jeito dos grandes artesãos do passado - Jacques Deray ou Pierre Granier-Deferre - uma vestimenta excessivamente psicológica, quando tudo se tornaria bem mais ligeiro se se ficasse pelo seu tratamento simplificado. Outros críticos teriam acentuado a misoginia da narrativa, já que remete as mulheres para o papel de vítimas, de objetos decorativos ou a não falarem língua que se entenda (que melhor utopia para quem detesta ouvi-las?), enquanto não ilude o fascínio pelos «gajos» (os «mecs») heterossexuais, de camisas suadas e cheiro a álcool enquanto conduzem carros vistosos e tratam as companheiras abaixo de cão. Longe vão os tempos dos «dandies» da «nouvelle vague», que vagueavam sem objetivo definido por Paris, que então era parte integrante dos personagens da história, e aqui reduzida a cenário semiobscurecido e neutro, apenas espaço de encontros com quem virá influenciar o curso dos acontecimentos. A luz substitui-se a esse exterior citadino, porque é ela que ilumina os rostos e subexpõe os planos.
São opiniões pertinentes, mas que não tiram os méritos a um filme claramente influenciado pelo cinema de Cassavetes e de Martin Scorcese, mesmo que balizado nos que são os mais comuns temas dos filmes do realizador: o que é um herói? Como sê-lo e como deixar de o ser?
Ao contrário do cinema de Hitchcock, construído em função de uma ideia crescente de suspense, Audiard evita que o espectador entre ecrã adentro, limitando-se ao papel de testemunha, olhando, ouvindo, examinando, mas sem criar empatia com quem nele intervém. Para isso contribui a descontinuidade da montagem, que causa desconforto, interrompendo bruscamente os planos-sequência e se furta aos raccords mais canónicos. Objetivo que a música da banda sonora também acompanha, quer quando é eletrónica, quer quando o piano adota temas de Bach, mais próximos da lógica matemática e racional de uma vertente da sua obra, do que da outra, que pré-anunciava o romantismo.
Quando chegamos ao final do filme sentimos que Thomas evoluiu indecisamente entre a cólera e a melancolia, entre o pai bronco e a mãe sensível. Detestável quando o filme começa, ele irá humanizar-se e sairá engrandecido no final, quando compreende a impossibilidade de matar quem tanto odiara. Porque entretanto descobrira a beleza, as mulheres e a música, mudando-lhe o âmago da personalidade. Quando surge o genérico final ficamos com a convicção dele se ter tornado, enfim, dono de si mesmo.

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