segunda-feira, maio 14, 2018

(DL) Quando Lawrence Durrell iniciou o seu Quarteto


Foi em Chipre que Lawrence Durrell iniciou a escrita de uma das suas obras maiores - «O Quarteto de Alexandria» -, inspirado numa paisagem caracterizada pela sobreposição de vestígios de sucessivas épocas históricas, desde ruínas datadas do séc. XII a. C.  até aos castelos medievais hoje habitados pelas águias, sem esquecer as muralhas venezianas ou os mosteiros góticos. Sobre esse espaço, onde detetaria sem dificuldade o que designara como o «espírito do lugar», Durrell assinalaria que “esperava algo de magnífico ... mas não esperava que encontrasse uma beleza tão sufocante”.
Chipre a ilha de Afrodite, a deusa do Amor, sugere a Durrell a personagem de Justine, que daria o nome ao primeiro dos quatro tomos da tetralogia, logo considerada obra-prima sobre o tema da paixão amorosa.
O autor, amigo dileto de Henry Miller, chegara a Chipre em 1953, quando a ilha era, há quase um século, colónia inglesa. Percorre-a de sul para norte, de Paphos ao castelo de Saint Hilarion, de Kyrenia a Bellapaïs, fascinado pelo odor dos pinheiros, dos cedros e dos limoeiros, mas sobretudo pela História milenar, em que constantemente tropeça. Em Paphos, cidade do séc. IV d. C. testemunhou muitos vestígios da passagem de gregos e romanos, sucessivamente descobertos pelos arqueólogos desde que, em 1962, um agricultor dera com mosaicos romanos ao cultivar a sua quinta. Foi assim, que se vieram a revelar túmulos muito mais antigos datados do séc. XII a.C., numa necrópole monumental na sua arquitetura.
Durrell era, nessa época, um viajante infatigável, revoltado contra o conformismo de uma Inglaterra donde preferira apartar-se tanto quanto possível. Tinha publicado um romance que quase ninguém lera («Pied Papers of Lovers», 1935) e continuava a apostar na possibilidade de criar uma obra à medida da sua ambição. E a lenda, criada nesses anos 50 pelos primeiros guias turísticos, segundo a qual Afrodite nascera ali mesmo, numa praia a 8 quilómetros de Paphos, saindo das águas como filha do deus Uranus, impressionara-o o bastante para se inebriar na mitologia romântica e criar a bela Justine, que absorvia o amor com a mesma avidez com que se dessedentaria com água se tivesse sede.
Após Paphos, Durrell instala-se no pequeno porto de Kyrenia, donde se conseguem ver as montanhas turcas nos dias mais claros, como se se tratassem das miragens vislumbradas no deserto. Vila mágica, rodeada de verde pela flora propiciada pelas águas vindas das alturas e desembocadas no vale onde se situa, adotara como cor dominante o amarelo acastanhado do arenito em que se construíam as casas. E conta com as muralhas bizantinas do séc. VII, construídas para defesa contra os invasores oriundos do continente. O encanto também decorria de se tratar de terra particularmente do agrado dos funcionários ingleses do século XIX para aí passarem as férias de verão. Com eles também tinham chegado alguns artistas, que aí estabeleceram quartel-general de onde partiam todas as manhãs para lhe pintarem os aspetos mais sugestivos.
Durrell costumava frequentar o Harbour Club e, como não havia eletricidade, levantava-se muito cedo para encetar desde as primeiras horas do dia o labor literário. A calma que sentia à volta dava-lhe as condições ideais para escrever o romance que teria o amor como tema. Não lhe foi difícil compreender que ali desejaria sedentarizar-se, comprando uma casa em Bellapaïs.
Trabalha incansavelmente: ao mesmo tempo que é professor apostado em partilhar com os alunos o fascínio pela mitologia grega, Durrell avança no romance, e vai tomando notas, num afã de etnólogo, sobre tudo quanto lhe revelam os usos e costumes dos vizinhos, daí resultando o ensaio «Bitter Lemons», do mesmo ano de 1957 em que dará a conhecer «Justine» aos leitores.
O romance conta a relação amorosa, passada numa ilha grega, entre um escritor falhado e a bela esposa de um banqueiro. Inicia assim a abordagem de uma mesma intriga amorosa a partir da estrutura original de a desenvolver em quatro pontos de vista distintos. Às tantas diz serem possíveis três reações relativamente a uma mulher: amá-la, sofrer por ela ou torná-la personagem literária.
Muito próximo da casa onde se instalara duradouramente, Durrell encontrou o Castelo Saint Hilarion, do século XI, que o fascinou pela atmosfera onírica dos seus túneis secretos, muralhas e recantos sombrios. Lugar inquietante, assombrado pelas numerosas mortes aí verificadas, já era então domínio exclusivo das águias, que nele encontravam espaço de excelência para instalarem os seus ninhos. Sentimentos, sumptuosos horizontes e uma atmosfera enfeitiçada - ali Durrell encontra a inspiração privilegiada para compor a obra.
Em 1956 Durrell acaba por se ver coagido a sair da ilha, intimidado pela violência do movimento nacionalista apostado em garantir a descolonização. Mas os três romances, que se sucederão a «Justine» ainda terão muitas influências dos três anos felizes ali vividos.

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