domingo, março 11, 2018

(I) Quem é inocente?


Existiria a inocência numa idade dourada definitivamente perdida, em que o ser humano, ignorante e virtuoso - virtuoso porque ignorante! - vivia sem o sentimento de culpabilidade? Será que, com a expulsão bíblica de Adão e Eva do Paraíso estamos todos condenados a não sermos tidos como inocentes, porque subsiste dentro de nós a ideia do pecado, que se converte numa pulsão irresistível?
Autora de «Tu as couvert ma honte», a freira dominicana Anne Lécu defende a possibilidade de reencontrar a nossa inocência, mas contrapõe-se-lhe Emmanuel Caldier, conhecido como Manu, o Cigano, que passou dez anos na prisão por roubo e rapto, e considerando que, mesmo depois de cumprida a pena pelo tribunal, nunca mais se livrará socialmente da suspeita de ser um eterno culpado.
Esta discussão, ocorrida numa das mais recentes emissões de Raphäel Enthoven, constitui uma questão esdrúxula para um assumido ateu como é o meu caso, a quem nada diz a noção de virtude ou de pecado. Algo presente no texto bíblico de um dilema de São Paulo, que punha a questão nestes termos: “Sabemos que a Lei é espiritual, mas eu sou um ser carnal, vendido ao poder do pecado. Não: o que faço não o compreendo, porque o que faço não é o que quero, mas faço o que odeio! Ora se faço o que não quero, reconheço, de acordo com a Lei, que ela é boa. Na realidade deixo de ser eu quem concretiza a ação, mas o pecado que habita em mim”.
É claro que considerando-me à margem desses conceitos de virtude ou de pecado, sou particularmente rigoroso com um quadro de valores, que pode ser sintetizado de forma explicita como pertencendo às categorias pessoalmente assumidas como boas ou más. Perfilho uma Ética republicana onde os valores da Igualdade, da Justiça e da Fraternidade são particularmente imbuídos em tudo quanto pense ou me faça agir. Nesse sentido não é difícil diabolizar os defensores do capitalismo por pugnarem precisamente pela desigualdade, pela iniquidade da justiça, que com eles tenderá a favorecer os ricos e a prejudicar os mais desfavorecidos.
Aquilo que a Igreja considera como um pecado, acaba por significar um erro ou uma falha no meu código de valores à luz dessa Ética distanciada da crença em Deus, se nomeadamente as minhas ações contribuírem para a consolidação do capitalismo, e não fragilização. Embora a convergência entre o que considero um Bem e a Igreja uma virtude possa explicar a quase concretização prática na Itália dos anos 70, do compromisso histórico entre democratas-cristãos e comunistas tendo por objetivo comum a resolução de muitos dos problemas políticos e sociais de então. A questão da inocência e da culpabilidade poderá justificar aproximações futuras similares se os valores das partes desavindas nas idiossincrasias convergirem no bem comum para a grande maioria dos que em ambos acreditarem.
Em suma: somos culpados mesmo estando inocentes ou somos inocentes, mesmo quando nos acompanha uma indisfarçável culpabilidade? No fundo a inocência nem sempre é a antítese da culpabilidade é o que se pode concluir, confirmando-se a importância de não olhar para tudo como se se limitasse a uma tonalidade só branca ou só preta...

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