quarta-feira, março 21, 2018

(DIM) O jogo das aparências no cinema de Billy Wilder


Se optarmos por um sinopse do filme, que Billy Wilder rodou em 1959 com o título «Some Like it Hot», podemos dizer que temos dois músicos, Joe e Jerry, que se veem obrigados a disfarçar de mulheres para não se verem executados pela Mafia depois de, involuntariamente, testemunharem um ajuste de contas entre gangs rivais. O problema será o de se esconderem numa orquestra feminina com um deles a embeiçar-se pela concupiscente Sugar e o outro a suscitar a exacerbada paixão de um velho playboy.
No final dos anos 50 a América  distava muito do que aparentava ser: o ambiente era depressivo, o desemprego não cessava de aumentar e a Guerra Fria assombrava as consciências. A televisão  ocupava um espaço crescente no entretenimento das famílias e dobrava-se a finados por um certo cinema da época de ouro de Hollywood, com muitos dos seus melhores cineastas a assinarem os derradeiros títulos.
Billy Wilder realiza esta comédia trepidante em que talentosamente vemos o riso a disfarçar a amargura. É que, embora tivesse sido autor de filmes dramáticos e estado na origem do género policial, é recordado, sobretudo, como autor de comédias, onde, efetivamente, se parecia superar.
Um dos seus temas preferidos sempre foi o  jogo das aparências, o verdadeiro e o falso, que lhe possibilitavam vários níveis de leitura, capazes de suscitarem a adesão incondicional do espectador.
Essa noção de fachada, de embuste e de mentira surge em muitos dos seus filmes: em «Cinco Covas no Egito» (1946), um soldado britânico, em risco de ser apanhado pelos nazis,  disfarçava-se de gerente de hotel; em «Como Ganhar um Milhão (1966) um vigarista fingia-se seriamente ferido para enganar a companhia de seguros e receber uma fortuna;  em «A Incrível Susana» (1942) uma rapariga disfarçava-se de criança para só pagar meio bilhete numa viagem de comboio; em «Irma La Douce»  (1963) um polícia fazia-se passar por cliente para conseguir a exclusividade da prostituta por quem se apaixonara; em «Fedora» (1978) a obsessão pela imortalidade chegava ao cúmulo da usurpação de uma identidade para perdurar uma lenda.
Wilder interessa-se pelas possibilidades do disfarce para criar acontecimentos, relaçóes e, sobretudo, equívocos. As suas personagens neste filme seguem essa lógica: interpretam um papel, procurando dar uma imagem falsa da realidade. As beldades anseiam por diamantes e as mulheres são, por vezes, homens. Mas, em Wilder, os que assim se mascaram, nem sempre alcançam o objetivo pretendido: são as suas personalidades mais secretas, que acabam por se revelar.
Wilder e o seu coargumentista I.A.L Diamond focalizam-se no hiato entre o que se vê e o que se esconde, baseando o riso nessa distinção: na cena de sedução do iate, aposta-se no contraste entre o afetado desinteresse do herdeiro Shell e a perturbação sentida por Joe quando Sugar o beija. Antes de tal episódio, aquando do seu encontro na praia, quando Joe se afirma filho de um magnata do petróleo, Sugar não ousa confessar as origens modestas, fazendo-se passar por uma cosmopolita. Se se imagina amiúde de outra forma, Sugar acaba por só se enganar a si mesma: há aqui a habilidade dos argumentistas para utilizarem e contornarem os estereótipos da bomba sexual revelando a natureza tímida de uma rapariga insegura por trás da sua aparência ostensivamente provocante. Ela é afinal um ser sensível, que ilude a frustração no álcool.
«Quanto Mais Quente Melhor» é uma comédia, que se sobrepõe a um falso filme de gangsters. A abordagem do mundo do crime serve de introdução ao tema: um caixão esconde o material contrabandeado, as armas escondem-se no teto falso do carro fúnebre, um bolo de aniversário esconde um assassino ou a funerária ée uma casa de jogo ilegal onde o café tem um sabor singular. Seguindo o mesmo raciocínio a «Convenção dos Amigos da Ópera Italiana» é o disfarce para a Convenção anual dos chefes das diversas famílias mafiosas e as raparigas da orquestra, onde Joe e Jerry se escondem, enganam o empresário metendoo proibido álcool nos termos. Wilder captou na perfeição a ironia da época: em tempos de proibição todos o bebem .
Através do riso Wilder denuncia a hipocrisia generalizada nas relações. Após ter-se interessado pela libido nova-iorquina e as correspondentes tentações adúlteras estivais, Wilder observa a sexualidade do quotidiano, que condiciona os comportamentos: a misoginia dominante e a emancipação social do dito sexo fraco. Os heróis, dois músicos que atuam nos cabarés de Chicago, têm uma noção muito própria das suas relações com as mulheres: apesar de se mostrar mais tímido que o parceiro, Jerry depressa  se põe a imitar o lado engatatão de Joe. O cenário paradisíaco da Flórida acentua os reflexos condicionados de sedução como se deteta no olhar conspícuo dos velhos milionários alinhados no terraço do hotel, quando assistem à chegada da orquestra feminina.
Na ótica masculina as mulheres servem para propiciar o prazer. Quando se disfarçam para escaparem aos mafiosos, os dois parceiros inspiram-se na sua própria conceção de uma Mulher, que realmente desconhecem. Billy Wilder diverte-se com essa interpretação entre a imitação e a caricatura: na praia, em fato de banho, Daphne mimetiza a feminidade gesticulando até ao limite do cabotinismo. 
Esse recurso ao travestismo serve a Wilder e a Diamond para romperem as fronteiras, confundirem os géneros. Pouco a pouco Joe e Jerry vão ganhar uma visão totalmente diferente da que tinham à partida sobre essas mulheres que denegriam: o machismo serve o propósito cómico. Ao disfarçarem-se de mulheres, ambos veem-se desarmados, enfraquecidos, rebaixados ao nível que, anteriormente, lhes fundamentava a arrogância viril. Quando Daphne fica espantada com o seu sucesso (“eu não sou sequer bonita”), Josephine responde-lhe: “ Isso não lhes importa: tens uma saia, és como um pano vermelho à frente do touro”.
(texto produzido a partir de uma análise de Stéphane Beauchet no DVD Classik de 11/9/2011)



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