quinta-feira, março 22, 2018

CINECLUBE GANDAIA: Transgredir era (e é!) preciso

Jerry, interpretado por Jack Lemnon, bem gostaria de sentir o corpo de Sugar, mas, pelo contrário, vê-se assediado por um velho milionário, que não se priva de o apalpar. Daphne mostra-se chocada com essa audácia masculina: “Já estás a ver o que elas sofrem!”, responde-lhe Josephine. Esta primeira etapa constitui uma breve vingança da mulher sobre o homem, uma espécie de reviravolta dos acontecimentos para os autores que, depois de se terem feito cúmplices da situação (sente-se que Wilder poderia subscrever perfeitamente muitos dos propósitos misóginos do início!) demonstram o inverso por absurdo, recorrendo a um inesperado contraponto.
Repare-se que, para os dois argumentistas, as mulheres são descomplexadas: em vez da sensata dona-de-casa então propagandeada pela cultura dominante, estão sempre prontas para a festa, para divertirem-se. Aspiram à liberdade, mas veem-se aprisionadas num papel que a sociedade cuidou de lhes impor. Logicamente Joe e Jerry são surpreendidos com o contraste entre a realidade e a sua visão da Mulher.
Wilder revelou que um dos primeiros títulos em que pensou para o filme fora «Not Tonight Josephine», mas encontrou outro, mais malicioso, que lhe permitia introduzir uma inequívoca ambiguidade, porque «Some Like it Hot» pressupõe vários significados possíveis, desde a alusão ao jazz, que está presente no filme (Joe diz nomeadamente: “suponho que alguns gostam de temas mais quentes. Por mim prefiro a música clássica!”) até à alusão ao ato sexual com os corpos encalorados pelas pulsões do desejo.
O amor concretiza-se no clima estival da Flórida enquanto a morte fica remetida para o frio invernal de Chicago com as suas ruas obscuras. O desafio consiste em abordar as questões da sexualidade através da comédia, não descurando alguns temas sensíveis como a impotência, que serve de pretexto para a cena de sedução entre Sugar e Shell Jr no iate em que se conseguia a perspetiva ideal para inserir uma audaciosa sugestão: “Refletimos e pusemo-nos a seguinte questão: que existe de mais excitante do que seduzir Marilyn Monroe? E encontrámos a resposta: ser-se seduzido por ela!” Ao darem a Sugar a iniciativa os argumentistas invertem os papéis  e criam uma originalidade digna de nota. A reviravolta é arguta e coerente o bastante para levar Sugar a revelar os seus talentos num pobre (mas encantado) Joe, que tem uma enorme dificuldade em fingir o desinteresse. Obviamente que a ereção torna-se aparentemente ocasional.
Se a sexualidade é um dos principais temas do filme, Sugar encarna-a inequivocamente, quer para os dois protagonistas, quer para os espectadores. Ela serve a estória com as confusões, que provoca, reforçando as emoções de um filme, que à conta do ritmo e da sua eficácia, parece às vezes perder-lhes o norte. Através dos jogos de identidade e das mentiras, o epílogo acabará por sobrepor o amor à razão.
Wilder, sempre atento à mínima possibilidade narrativa, recorre ao disfarce para provocar o apetite sexual dos dois músicos, transformando-o em frustração punitiva:  quem dissimula acaba por sofrer as consequências. Quando Sugar confessa a Josephine a atração irresistível pelos saxofonistas, o pobre Joe quase lhe revela a verdadeira identidade. É uma das piscadelas de olho, que Wilder vai deixando ao longo das vicissitudes dos personagens.
Na divertida cena das carruagens-cama em que Joe e Jerry se veem “fechados numa pastelaria com montes de guloseimas à volta” são obrigados a reconhecer que, para safarem a pele, têm de “cumprir difícil dieta!”. Aproveitando a situação Wilder desnuda as músicas da orquestra, sugerindo-lhes as curvas generosas num espaço tão apertado. A tentação dos corpos, que se tocam, levam os protagonistas quase até ao ataque de nervos, obrigados a conterem-se para não se verem desmascarados. Em pânico, Jerry pensa repetidamente: “Sou uma rapariga! Sou uma rapariga!”
Logo no primeiro filme, que realizou, quando chegou à América  («A Incrível Susana», 1942) Wilder sugeria a ambiguidade na atração de um adulto por uma adolescente, que colidia com as convenções. O recurso ao travestismo é ideal para criar as pilhérias, os mal-entendidos, sexuais obviamente. As alusões tornam férteis as ambiguidades: a possibilidade chocar, quando se veem dois homens vestidos de mulheres, banaliza-se através dos recursos da comédia, que diluem os preconceitos do público e os rigores da censura. Uma vez mais experimentavam-se situações, que colidiam com o código Hays que, por esta altura, servia de aliado da besta macartista. Wilder era um especialista em transgressões: “A censura era muito estúpida tornando irreprimível a vontade de ludibriá-la. Ela um desafio, incitando-nos a divertirmo-nos à sua custa.”
O filme também sugere a homossexualidade como tema, já que, se as relações entre as mulheres  não vão mais longe do que a amizade (embora Wilder não deixe de mostrar um beijo sugestivo escondido pela cabeleira de Josephine), o casal formado por Daphne e Osgood Fielding III é elucidativo e provocador. Mas mesmo essa relação parece cingida na lógica heterossexual do sexo e do dinheiro. Os argumentistas conseguem que o público aceite que um homem banal revele uma feminidade até então recalcada, igualmente presente quando Shell Jr. esquece de tirar os brincos, que lhe servem de disfarce enquanto Josephine.
Wilder e Diamond insinuam que o lado feminino está sempre subjacente nos machos mais vulgares e foge-lhes da carapaça tão só a ocasião se apresente. Não é estranho, por outro lado, que Daphne acabe por se sentir tão à vontade no ambiente feminino. Daí que lhe surja como natural a noite que passa a dançar o tango com Osgood, que redundará no consequente pedido em casamento. A confusão de género é, neste caso, muito avançada para a época em que o filme foi rodado.
Porque era necessária uma atriz que equilibrasse todas estas questões, a escolha de Marilyn era indiscutível. Numa entrevista Wilder constata que os dois desempenhos mais importantes eram os dos dois homens que teriam de se disfarçar de mulheres, mas Marilyn aterrara na produção como um bónus. Para o papel de Sugar, ele e Diamond tinham considerado, que qualquer atriz serviria os propósitos da intriga. Por isso pensaram na hipótese de convidarem Mitzi Gaynor. Só que souberam, nessa altura, que Marilyn estava interessada no papel e a ideia inicial adaptou-se a essa colaboração: “A intriga e a presença de Marilyn Monroe criavam uma tal tensão dramática tal, que só poderia resultar numa explosão cómica. Que bela bomba poderia disparar-se de tal canhão!”
Marilyn surge como um fantasma vivo: era a mulher mais desejada do mundo com a sua vulgaridade elegante. Sugar, a personagem, era uma jovem inocente que sofria pelo efeito da sua beleza nos homens, que a assediavam, tornando-a bem mais complexa do que aparentava, tanto mais que Wilder não lhe poupava a vertente cúpida  (a de se tronar milionária nem que fosse á custa de casar com quem quer que fosse). Nessas contradições, entre a imagem tórrida e a de rapariga sensata, Sugar acaba por constituir um alter ego coerente da própria Marilyn.
(texto produzido a partir de uma análise de Stéphane Beauchet no DVD Classik de 11/9/2011)



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