segunda-feira, março 05, 2018

(DL) «O Monarca das Sombras» de Javier Cercas


Concluída a leitura de «O Monarca das Sombras» fico rendido à forma como Javier Cercas descalçou a bota de ter tido um tio-avô morto na Guerra Civil, quando vestia a farda de alferes franquista e sobre ele biografar, apesar de o ter sabido no campo ideológico oposto ao seu relativamente a esse momento da História espanhola.
Necessariamente coloco a dúvida se teria alguma predisposição para escrever sobre um tio, que tivesse pertencido à Pide ou guarda no Tarrafal? Porque não seria por certo nenhum cartão de visita, que gostasse de ostentar, mesmo sendo associável a minha pessoa ao seu exato contrário!
É sobre o curto período de vida desse Manuel Mena, que Cercas constrói uma narrativa, válida por si mesma, mas também pelo making off, que permanentemente a acompanha. Por isso há quem tenha relutância em entender o livro como um romance, porque enquadra-se bem mais numa lógica autobiográfica. Há, por isso, quem o defina como um «romance sem ficção». Porque, na realidade, mais do que a estória das ilusões de um rapaz voluntarioso, comprometido com o lado que menos defenderia os seus interesses de classe, Cercas escreve sobre as dúvidas metodológicas de melhor cumprir o projeto a que se propusera.
Acaba por tratar-se de um romance dentro do romance, com um posicionamento ideológico do escritor bem definido, e por isso mesmo disposto a mostrar Manuel Mena como triplo perdedor da guerra em que se alistara aos dezoito anos. Porque, mais do que breve monarca das sombras, tal qual Aquiles, melhor teria valido ser servo de servo, mas vivo. Não teria assim perdido a vida, a honra (será sempre recordado como defensor de uma causa injusta) e o próprio interesse da família, derrotada efetivamente por um regime, que cuidaria de a manter na miséria, mesmo que remediada.
À medida que o fim do livro se aproxima, ele ganha ainda outro inesperado sentido: dado que vira a própria mãe a mistificar toda a vida desse tio-avô, que tanto a acarinhara em criança, Cercas conclui-se incapaz de lhe dar parte de viva voz do que descobrira na sua longa investigação. Por isso o romance surge-lhe como a alternativa mais expedita, aquela que melhor o poderá levar a contar a verdadeira faceta de um herói familiar, afinal alvo da fraudulenta propaganda com que o conseguira iludir o bastante para o tornar carne para canhão.
Nunca saberemos o que Manuel Mena terá sentido em cada fase da sua curta vida. Sabemo-lo miúdo algo arruaceiro na escola primária, mas mais comedido, e até ajuizado, com a evolução da adolescência. E talvez Javier Cercas se queira iludir com a sua tristeza, quando visitou a família na última licença antes de partir para a morte na Batalha do Ebro: seria mesmo a consciência de ter caído num logro, como o autor pretende sugerir?
Nunca o saberemos, mas que temos aqui um excelente retrato de alguém a quem é imposta um percurso biográfico, que não deveria ser, de modo algum, o seu, é um facto, que vai ao encontro de abordagens semelhantes concretizadas por Cercas noutras das obras anteriormente publicadas.


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