sábado, março 24, 2018

(I) Caímos todos no mito da virilidade?


Na Elegia VII do seu Livro 3 dedicado aos Amores, pode-se ler este texto de Ovídio: “Agarrei-a nos meus braços e fiquei impotente; que vergonha a minha a de me ver reduzido a uma massa inerte no meu leito preguiçoso. Apesar dos muitos desejos, que a inflamavam, não pude despertar o órgão do prazer, enfim, esgotado! Ela bem me agarrou com os seus braços de marfim, mais brancos que a neve de Sitónia; bem tentou, com a língua voluptuosa, prodigalizar a minha com beijos, deslizando sob a minha coxa a sua própria, lasciva, chamando-me pelos nomes mais ternos, dizendo-me o seu vencedor, tudo tentando para excitar a paixão; os meus membros entorpecidos como se tivessem sido esfregados pela fria cicuta, de nada me valeram. Fiquei como um tronco sem vida, como uma estátua, como uma massa inútil e questionei-me se seria um corpo ou já uma sombra.

Como será na velhice se não voltar a recuperar a força da juventude? Coro de vergonha com o envelhecimento! Sou jovem, sou homem e a minha amante não encontrou em mim, nem a juventude, nem a virilidade! (…) Que feiticeira escreveu coisas temíveis contra mim em cera fenícia? Ou quem me terá enfiado no fígado as suas afiadas agulhas? Os tesouros de Ceres, tomados de um encantamento,  passarão a ser, em breve, erva inútil. Submetidas a um bruxedo as águas de uma fonte esgotam-se, vendo-se os ouriços a desprenderem-se dos castanheiros, as uvas a tombarem das vinhas e os frutos a caírem das árvores sem que nada as agite. Como evitar que a magia também possa esmorecer o corpo? Poderá ter dissociado o meu da sua sensibilidade? E a isso acrescenta-se a vergonha. Sim, a vergonha torna-se-me fatal, e constitui a segunda causa da minha impotência.”

Este texto clássico constitui uma introdução interessante ao ensaio intitulado «Le Mythe de la Virilité» de Olivia Gazalé. Que coloca a questão nestes termos: e se as mulheres e os homens foram sempre vítimas do mito da virilidade? Da pré-história aos tempos de hoje a autora cria uma impressiva história do feminino e do masculino, que reinterpreta de forma original o velho tema da guerra dos sexos.
Desde os primórdios da civilização, que o homem sempre baseou a sua imagem de sexo forte através desse mito, que postulava não só a inferioridade feminina, mas também a do estrangeiro, do pederasta e de outros seres tidos como inferiores. Historicamente o mito legitimou a menorização da mulher e a opressão do homem pelo homem.

De há um século para cá esse modelo guerreiro, político e sexual vem sendo desconstruído tão eficientemente, que já há quem lamente uma suposta crise da virilidade. Os misóginos acusam o feminismo de ter privado o homem da sua soberania natural. Como dar-lhes resposta?

Que o mal estar masculino existe é um facto, mas não radica na emancipação da mulher. A virilidade caiu na sua própria armadilha, naquela que o homem, procurando impor à mulher, acabou por, ele próprio, nela cair.

Ao fazer do mito da superioridade masculina o fundamento da ordem social, política, religiosa, económica e sexual, ao valorizar a força, o gosto pelo poder, o apetite da conquista e o instinto guerreiro, justificou e organizou a servidão feminina, mas condenou-se a reprimir as emoções e a odiar a efeminação, cultivando ao mesmo tempo o gosto pela violência e pela morte heroica. O dever da virilidade tornou-se um fardo e «tornar-se homem» um processo de custos assaz elevados.

Se a virilidade é hoje um mito crepuscular, não temos de por isso nos alarmarmos, mas regozijarmo-nos. Porque a atual reinvenção das masculinidades não é apenas um progresso para a causa dos homens, pois constitui igualmente o futuro do feminismo.

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