terça-feira, março 20, 2018

(DL) A atenção sempre ativa na interpretação da realidade


Livre pensador, irreverente e independente, o escritor argelino Kamel Daoud não tem ilusões sobre o papel da literatura nos dias de hoje: “quando se escreve tem-se a ilusão de querer mudar o mundo, defender e enaltecer as liberdades. Quando se compreende a impossibilidade de o conseguir, aceita-se ser comentador da atualidade como testemunha da nossa época.”
Malquisto no seu país, passou a preferir a língua do colonizador à do colonizado, quando ela se lhe tornou a da infração, da dissidência e da libertação. Na sua singular visão da História o maniqueísmo não tem lugar quando se trata de olhar para esse passado colonial: “Há uma relação, quer de vítima, quer de conforto, quando se trata da memória da colonização. Reclama-se, culpa-se o outro e nada se assume pessoalmente”.
«Zadar ou os Salmos» é um dos seus mais conhecidos romances. O protagonista fica órfão de mãe e, afastado do pai, cresce na companhia de livros, que lhe abriram as portas para uma língua, que não considerava como sua. E convence-se de ter um dom: se escrever conseguirá afastar a ameaça da morte. Por isso anota um fluxo ininterrupto de frases num caderno como forma de prolongar o tempo de vida. Qual Xerazade disposta a salvar-se e a todas as mulheres do reino de Shariar, noite após noite, ele experimenta o intenso poder do imaginário. E é com esse estranho poder, que é chamado à cabeceira do pai moribundo, conduzido pelo meio-irmão que detesta.
Sendo ao mesmo tempo fábula, confissão e parábola, o segundo romance de Daoud homenageia a necessidade da ficção e a insolente liberdade de escolher uma língua em que se exprimir.
No ano passado ele viu publicado «Mes independances. Chroniques 2010-2016)», que remete para os seus vinte anos como jornalista convidado para assinar crónicas regulares em várias publicações, quer argelinas, quer na imprensa estrangeira. No período dos seis anos referenciados no título assinou mais de dois mil textos, que foram submetidos a uma seleção para que 182 acabassem por figurar nessa antologia. Os temas são múltiplos, mas é frequente vê-lo a beliscar o Islão político e a deliquescência do regime de Argel. Mas também se constata que as primaveras árabes ter-lhe-ão motivado falsas esperanças e os direitos das mulheres merecem-lhe particular atenção.
As opiniões são originais, incisivas e comprometidas. Para além do exercício de estilo ele interroga continuamente a atualidade, o homem, os deuses e as liberdades.

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