quinta-feira, março 15, 2018

(DIM) CINECLUBE GANDAIA: «O Pecado Mora ao Lado» de Billy Wilder (II)


Billy Wilder é um dos grandes realizadores norte-americanos do pós-guerra, embora tenha iniciado a carreira cinematográfica nos anos trinta nesta Europa donde teve de fugir para que a condição de judeu o não condenasse ao fatal desenlace responsável pela morte de muitos dos seus familiares. E embora tenha assinado títulos noutros géneros foi na comédia, que concretizou algumas das suas melhores obras, por quase sempre integrarem venenosas sátiras aos costumes hipócritas da sociedade norte-americana. Nesse sentido, mesmo não sendo dos seus títulos melhor conseguidos, «O Pecado Mora ao Lado» espelha essa preocupação em pôr em xeque os cânones morais de obrigatória acatação sob a forma do execrável Código Hays, lançado nos anos 30, para que a indústria cinematográfica não pusesse em causa a sacrossanta instituição do casamento. E embora uma apreciação descuidada da história nele contada possa justificar o ódio de estimação das feministas mais radicais, celebra-se aqui um tipo ideal de mulher, fonte de atração universal que move mundos e fundos, personagens e argumentos, enquanto o homem é apresentado nas suas fraquezas e contradições.
O protagonista é, de facto, Richard Sherman, que está em quase todo o filme do início até ao final. Ele é apresentado como um sujeito com uma enorme imaginação, capaz de alimentar fantasias criativíssimas na cabeça, já que tem por profissão transformar capas de livros sérios, sisudos ou grandes clássicos em mercadorias apelativas, capazes de suscitarem o impulso para a sua compra. E é por ele que se coloca a questão de investigar até que ponto o homem resiste à tentação para cumprir com os valores morais do casamento.
Aparecendo muito menos do que Tom Ewell, Marilyn Monroe toma conta do filme, apesar de nem sequer lhe conhecermos o nome enquanto personagem. No jogo do gato e do rato com os censores de Hollywood, Wilder sugere a nudez dela fazendo-a aparecer de ombros destapados ou com a insólita confissão de pôr a roupa íntima a refrescar no frigorífico. Ainda assim transborda inocência: quando entra em cena Marilyn Monroe é incrivelmente talentosa a fazer-se passar por idiota, recorrendo a uma inesgotável diversidade de expressões com os olhos e com a boca, que acentuam-lhe a sensualidade, ademais rematada por aqueles gritinhos deliciosos quando toca ao piano com o vizinho. Numa das cenas mias divertidas ela mostra-se aliviada por o saber casado, porque "todos os homens apaixonam-se por mim e acabam por pedir-me em casamento. Eu sou muito nova para casar".
Billy Wilder, com o estilo europeu, obtém o melhor de cada ator e forja uma comédia sofisticada e elegante em que até goza com o próprio cinema ao replicar o apaixonado beijo de Burt Lancaster e Deborah Kerr em «Até à Eternidade». O aspeto mais discutível do argumento, adaptado pelo próprio realizador da peça de George Axelrod,  reside nos momentos em que Sherman, em vez de parecer que desabafa, monologa  dentro de casa como se o seu propósito fosse explicar ao espectador, sem com ele cruzar o olhar, o que se estava a passar à sua volta e dentro de si próprio.
No capítulo das piadas com os próprios atores há aquela fala em que é evocada a possibilidade de, havendo uma loura na cozinha, se tratar de Marilyn Monroe - tipo de pilhéria, que está na mesma linha das referências do filme anterior deste ciclo quando Lauren Bacall evoca Humphrey Bogart com quem estava casada. Há igualmente a referência cinéfila a um dos filmes de série B de então - «O Monstro da Lagoa Negra» de Jack Arnold - que é aquele donde Sherman e a vizinha haviam saído antes dela se pôr a arejar as coxas no respiradouro do metro nova-iorquino. Não deixa de ser curioso assinalar que, quando o vestido dessa cena foi rematado num leilão há sete anos atrás por 5 milhões de dólares, o valor correspondeu a mais do triplo do custo do filme e quase igualou o das receitas por ele conseguido aquando do lançamento.
Como aspetos complementares a que vale prestar merecida atenção avultam ainda a utilização do Techniclor na fotografia, a música de Rachmaninov como tema principal da banda sonora, a imaginação dos diálogos e a sempre notável criatividade de Saul Bass na concretização do genérico inicial.

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