terça-feira, dezembro 27, 2005

MOZART: O ARTISTA COMO SIMULADOR

No conjunto de textos sobre Mozart, que o «Nouvel Observateur» publica, o de Jacques Drillon é, não só o primeiro como um dos que melhor situa a personalidade do criador sem cuidar dos seus momentos cronológicos. O texto, que se segue é uma montagem dos trechos mais significativos desse artigo:

“O pai, Leopold, ensinou-lhe tudo. Por exemplo que o mundo é governado pelos ricos, que o dinheiro dá poder, mas não inteligência, nem talento; que é preciso admitir com o torcionário católico e romano, que a Terra não roda em torno do Sol, e a sorrir à marquesa analfabeta.
Mozart não leu nada, mas aprendeu tudo. Há pessoas assim. Talvez ele tenha aprendido isso tudo através da música? A música traz e recebe, abandona e conserva. Em troca do muito, que ela lhe ensinou, Mozart muito terá ensinado à musica.
A educação, que o pai lhe transmite tem um fundamento elementar: é preciso ser rico; para ser rico, quando se nasceu pobre, é preciso ganhar dinheiro; para ganhar dinheiro (sem o roubar) é preciso ter de que vender; para ter de que vender, é preciso ter feito algo; para ter feito algo é preciso saber fazê-lo; em suma: ao trabalho.
O estado natural de um objecto é o repouso, a estabilidade. Um lápis pousado sobre uma mesa; a mão de um homem, pelo esforço que ele efectua, mantém seguro o lápis num equilíbrio artificial. Depois, larga-o. O lápis procura a sua posição própria de equilíbrio, como se a desejasse. É assim, que o objecto vai variando de repouso em repouso, como o Sol vai do crepúsculo matinal ao crepúsculo do fim da tarde, confundindo-se numa única imagem, arroxeada, lânguida e plana. A melodia mozartiana é assim: descontraída, tensa, descontraída. Quase sempre tem a forma geral de um sino, que se eleva e volta a cair, como a luz da «Jovem Rapariga do Turbante» de Vermeer. Mozart segue à letra a curva dos fenómenos naturais: repouso, desejo, prazer, repouso; nascimento, vida, morte, e assim sucessivamente.
Amamos Mozart, que sentiu, mais do que reflectiu, parque o seu verde é o da erva, o seu azul é o do céu, e o seu perfil o das montanhas.
Se nunca se conseguiu explicar Mozart é porque se procurou a solução do seu génio pelo lado das suas qualidades. Pareceria lógico fazê-lo. Mas talvez fosse preferível procurá-lo pelo outro lado. O da sombra, aonde se escondem os vícios, os defeitos, as cobardias.
Como o homem de negócios contorna a lei em seu proveito, aparentando respeitá-la, Mozart torneia a lei paterna. A palavra ‘encomenda’, que, em francês, significa tanto a ordem de compra, como a obra encomendada, parece ter sido fabricada para ele. Em Mozart tudo é sabotado. Porque o Outro é o maior obstáculo, aquele que deverá ser enganado, rodeado. Então Mozart faz de conta que respeita a encomenda, mas subverte-a. Os instrumentos, os cantores, os chefes de orquestra, sabem que, nele, a simetria só é fachada. Tudo é curto em demasia ou mais longo do que o exige a norma…
Mozart apresenta-se a uma luz, que não é a sua, faz o contrário do que diz, oculta a perspectiva. Depois, mostra, depois esconde, e cada confissão tem por preço um mistério.”

Sem comentários: