segunda-feira, outubro 31, 2005

A CARMEN COMO PRETEXTO

As iniciativas do Ginásio Ópera começam a ganhar consolidada relevância na forma de inventarmos os fins-de-semana. Desta feita o local do evento foi o Hotel Vila da Galé Ópera, junto à antiga FIL, e tinha a «Cármen» de Bizet como tema. Primeiro, sob a forma de conferência com José Maria de Freitas Branco e José Atalaya. Oportunidade para evocar a injustiça de jamais Georges Bizet ter recebido o reconhecimento por esta obra maior da sua criatividade, tanto mais quanto a estreia foi tumultuosa no repúdio público e da crítica em relação ao apresentado em palco. Uma prova reiterada de como a genialidade custa a ser quantas vezes reconhecida…
E, no entanto, quer Tchaikowski, quer Mahler, viriam a elogiar «Cármen» como uma obra perfeita. Quanto a Nietszche, servir-se-ia dela como arma de arremesso contra Wagner numa polémica, que incendiou a intelectualidade alemã nos finais do século XIX.
Na assistência o já retirado tenor Álvaro Malta trouxe algumas recordações deliciosas sobre o seu passado artístico, mormente quando co-interpretou esta Ópera com uma idosa e gordíssima soprano em quem seria difícil descortinar a sensualidade previsível da protagonista. Até porque, sendo um espectáculo tão popular quanto possível, a ópera deverá assumir-se, à partida, como credível.
Seguiu-se a interpretação de algumas das árias mais conhecidas da ópera, a cargo da meio-soprano ucraniana Laryssa Savtchenko e do tenor Pedro Chaves. Acabados de chegar de um ensaio de «Otelo» no «São Carlos». Ela com um intenso vozeirão, que Álvaro Malta viria a conotar com as suas apreciadas vozes búlgaras, mas só voz, sem qualquer expressividade quanto aos estados de alma supostamente ilustrativos das suas palavras. Ele, pelo contrário, uma muito boa surpresa, quer quanto à pujança da sua voz, quer no respeitante à tentativa de encenar as contraditórias reacções do ciumento Don José.
Ao jantar a conversa com o António Rebordão, um dos responsáveis do Ginásio Ópera, deu para entender como é possível fazer tanto com tão pouco: um orçamento de vinte cinco mil euros tem dado para mais de vinte iniciativas distintas. E já se sonha com a expansão para o Porto e para os Açores…
A concluir a noite ficámos perante o filme realizado por Francesco Rosi e com Júlia Migenes, Placido Domingo e Ruggero Raimondi nos principais papéis. Para apreciar em quase três horas como Bizet concebeu, de forma visionária, uma mulher livre, capaz de exigir do Amor uma dedicação quase absoluta, mas resoluta - sem olhar a consequências - na rejeição quando decepcionada com a qualidade desses afectos.
Apesar de muitas defecções, os resistentes que chegaram até quase à uma da manhã, tiveram o privilégio de constatar a tal sensualidade, que quer José Maria de Freitas Branco, quer Álvaro Malta haviam referido como um dos principais requisitos para uma intérprete desta personagem. Lamentando-se que Migenes tenha perdido as suas qualidades vocais de forma tão inglória e tão precocemente.
Mesmo com o corpo a reclamar da incomodidade das cadeiras, saímos dali com a sensação de termos vivido algo de excepcional...

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