terça-feira, dezembro 06, 2005

UM FATALISTA NADA DADO A TRISTES FADOS

Passados mais de três séculos, «Jacques Le Fataliste» continua a ser de uma actualidade pertinente no que diz respeito à luta de classes e ao relacionamento entre homens e mulheres.
Rogério Samora é esse Tiago que, enquanto motorista, vai conduzindo o seu patrão (André Gomes) pelas estradas do país, enquanto recorda histórias pícaras relacionadas com as suas experiências amorosas. Essa conversa, só interrompida por alguns breves episódios - um desastre, o roubo a que são sujeitos em sórdida estalagem, o enterro do antigo capitão - serve para estabelecer a fronteira entre os valores de duas classes mais antagónicas do que parecem.
Porque Tiago demonstra maior esperteza do que a sua simplicidade sugere ou não tivesse ele aproveitado a luxúria de duas mulheres, que se julgavam dispostas a iniciá-lo nos mistérios do amor, de que ele já era afinal versado. E a sua ousadia revela-se, amiúde, quando consegue reaver a carteira roubada na estalagem ou ao exigir à pistola, que lhe facultem jantar.
Ao invés, o patrão é personagem passivo, apenas interessado em colher satisfação das histórias alheias, sem arriscar um gesto próprio quando as dificuldades atalham ao caminho.
Não surpreende que, escrito na década anterior à Revolução Francesa, este texto lhe sirva de perspicaz anúncio. Porque a tese de existirem inevitabilidades escritas no céu, não impede que elas decorram das consequências dos comportamentos assumidos cá em baixo…
Por isso os dois personagens imitam Quixote e Sancho Pança, mas já com algumas importantes alterações: cansado de perseguir dulcineias, e já ultrapassado pelo seu tempo histórico, o patrão engordou e não evita o tédio no assento traseiro da viatura, inconsciente da iminente ultrapassagem social, que o espera.
Ao invés Tiago é um criado a quem as circunstâncias forçaram a ser agente activo e, como tal, emagreceu, pronto para possuir tudo quanto era dantes propriedade do patrão. Daí que tenha conseguido colher o fruto da menina tão cobiçada por este e se lhe antecipe na conquista da bela estalajadeira (Susana Borges), que passa uma noite a contar-lhes a história moral de uma viúva, que se vinga do seu novo amante ao casá-lo com uma antiga prostituta, por ela educada como recatada menina de sociedade, quando lhe sente esfriarem os ardores. Este episódio servirá para confirmar a grande actriz, que é Rita Blanco.
Na cena final - a da simbólica travessia de uma ponte - o patrão já se sentara ao lado do seu motorista. Mas a História revelará que não tardará a ser escorraçado de uma viatura em permanente movimento...

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