segunda-feira, dezembro 12, 2005

JEAN CHRISTOPHE RUFIN: «A SALAMANDRA»


EXTRACTOS DE UMA ENTREVISTA COM O AUTOR
Os leitores que me conhecem sabem que fiz, até agora, calhamaços, seja sobre temas históricos, seja sobre temas contemporâneos, objecto de muito trabalho. Com este romance aconteceu algo de diferente: era para constituir uma novela, que acabou por se tornar mais comprida do que era suposto. À partida eu só queria que fosse um conto, que viesse a integrar um livro com outros de tamanho reduzido. Um livro diferente do que estava habituado.
A história era verdadeira e tinham-ma contado no Brasil. Doravante ela passou a obcecar-me, a perturbar-me, a dar-me vontade de a escrever. Um caso muito simples: uma mulher vai viver para o Brasil e conhece um rapaz na praia. Vivendo uma paixão, que vai terminar ao mesmo tempo mal e bem. Ora, a verdade é o que há de mais difícil para ser tratado num romance.
A verosimilhança é diferente da verdade. Abordamos uma história e a verdade é como as pedras, não se as pode esculpir, mas sim polir , mantendo-lhes a forma. E com esta história foi parecido.
As coisas evoluem muito gradualmente. Em cada vida há sempre pequenas progressões em vez de grandes decisões. Uma série de pequenas coisas que vão conduzi-la a um estado irreversível.
É a última vez que farei um livro assim, já que prefiro protagonistas felizes. É a primeira vez que faço um livro onde se vive algo de duro. Quis aqui mostrar como se operava uma sedução, apesar do horror e da violência.
O livro tenta revelar o rosto escondido do terceiro mundo, de o mostrar tal qual é. Bem distante da vitrina exótica ou do mito revolucionário. Este tema do encontro entre os ocidentais e o seu terceiro mundo fantasiado, com o terceiro mundo real, percorre todos os meus romances. Tento ultrapassar a visão idealizada desse terceiro mundo para chegar a algo de muito mais ambíguo, e, segundo penso, muito mais real.
Um mundo ambivalente, ao mesmo tempo feito de riqueza e de violência, repulsivo e atraente, doce e duro, que está no eixo desta narrativa.
Tento não me repetir de livro para livro. Mas é verdade que aqui se volta a abordar a riqueza e a pobreza. Há aqui alguém que é mais rico que o outro, mas que no seu país - a França - é igual à maioria das outras pessoas . Catherine até vem de uma família pobre, e continua-o a ser de alguma maneira já que vive só… Pelo contrário Gil é pobre mas é rico em humanidade.
Através dessas duas pessoas dá-se o encontro entre dois mundos. A sua relação inverte-se e o que é interessante é que essa posição cruza-se, muda e transforma-se. Os personagens deixam de ser exóticos, para surgirem tal qual são: egoístas, duros, avaros por dinheiro. A atracção, que eles então exercem não enfraquece, mesmo que mude de natureza.
O Brasil é um país aonde se confia. Pode-se ter este tipo de percurso. Aliás muitos turistas acabam por ter aí problemas por não se darem conta de como o perigo pode surgir com cores muito sorridentes. A proximidade entre o extremo conforto, o extremo desejo, o lado paradisíaco, é muito grande. De repente pode-se ficar numa situação insustentável. Enquanto noutros países o perigo é mais perceptível.

UMA OPINIÃO PESSOAL

Há livros incómodos de ler. Porque, quando se trata de romance convencional existe - por muito que se o queira evitar - a natural identificação do leitor com alguns dos personagens. Ora Catherine, a protagonista deste livro, incomoda pelo que de irracional se revela no seu comportamento. O de quem julga ver o Sol e quer a ele ascender com umas asas feitas de cera. Despenhando-se com o mesmo fragor do infeliz Ícaro.
Ao princípio situamo-la como uma funcionária mediana de um não menos mediano escritório parisiense e com um passado tão cinzento como a cor desses dias, que deixa para trás, ao partir para o Recife, aonde um casal amigo lhe dá breve guarida.
Já passados os quarenta anos, Catherine nunca conhecera as alegrias do amor e, muito menos, as que o corpo pode prodigalizar. Por isso ela vai ter uma descoberta fascinada junto de um jovem gigolo, Gilberto, que lhe dá prazer e a cumula de atenções.
Mesmo adivinhando-lhe maior interesse no seu dinheiro do que nela própria, Catherine não consegue libertar-se da escravatura de sentimentos, que ele nela gera. E por isso não hesita em regressar muito brevemente a Paris para conseguir um razoável pecúlio com a venda do seu apartamento e com a rescisão amigável do seu contrato de trabalho, e voltar para os braços de Gil. Com a convicção de comprar-lhe a quase exclusividade dos afectos com tal maquia - suficiente para ele almejar à compra de um bar de onde poderá ver garantido o seu futuro.
Catherine não compreende que está a criar condições para se ir afundando de degradação em degradação. Primeiro ao ter de suportar os amigos do amante, ainda mais mal encarados do que ele próprio. Depois, participando com eles no roubo de umas telas, que eles não têm qualquer pejo em vandalizar, quando se torna evidente a dificuldade em as retirar das molduras. E, enfim, sendo por eles espoliada de todo o dinheiro, que lhe restava num precário esconderijo.
Sem dinheiro, ela vê-se abandonada, entregue a si própria no ambiente equívoco do Carnaval. Mas descobrindo aonde Gil vive com outra mulher, vai aí procurá-lo no propósito de se humilhar uma vez mais, pedindo-lhe migalhas de um amor, que sabe impossível.
Mas ele pontapeia-a, rega-a com gasolina, pega-lhe fogo.
É uma mulher seriamente queimada, que o cônsul francês no Recife vai encontrar no hospital. E por quem sente uma enorme compaixão. Mas nada poderá fazer por ela, já que, mesmo desfigurada, ela recusa-se a inculpar Gil em tribunal. O seu louco amor é feito de uma entrega incondicional, mesmo sem nada receber em troca.
E ela substituirá a também deformada Conceição na baiuca da praia aonde conhecera Gil, tornando-se na patroa de um conjunto de miúdos, que vendem bebidas a quem vem para a praia e não imagina os dramas, que moram ali ao seu lado...

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