quinta-feira, setembro 12, 2019

(S) Uma noite mágica em Frankfurt


Vinte anos depois Mandisa Dlanga ainda recordava aquela noite única com grande emoção: estava-se em Frankfurt, num dos muitos espetáculos da tournée de Johnny Clegg pela Europa nesse ano de 1999 e  o manager apareceu-lhe a correr, mandando-a não entrar em palco ao mesmo tempo que o cantor e os seus músicos.

Porquê?, terá indagado, já que era ela quem se incumbia do contraponto coral em todo o concerto.
Porque vais entrar com o Nelson Mandela.
Com quem?, perguntou ela, os olhos muito abertos pela surpresa.
Com o Nelson Mandela!
Assim se preparou um dos momentos mais surpreendentes e mágicos de quantos aconteceram ao zulu branco, falecido há dois meses, quando um cancro no pâncreas o venceu aos 66 anos.
Sem saber do que estava prestes a acontecer, ele arrancou com Asimbonanga, o hino que dedicara ao futuro líder do seu país, quando ainda estava preso na ilha de Robben Island, e  constituía o primeiro dos temas de todos os concertos dessa digressão. De súbito começa a ouvir a voz da ausente Mandisa a ecoar-lhe as palavras e, mais impressionante ainda, a presença de Mandela a dançar ao som da canção. Se até aí pudesse não ter sentido suficiente reconhecimento por todos os anos em que, pelas canções, desafiara o regime do apartheid  e se sujeitara à sua repressão, essa justa recompensa fazia-se nesse instante com a presença em palco daquele que terá sido um dos políticos mais importantes do século XX.
Nesse mesmo momento terá sentido a justa vingança contra aqueles músicos ingleses que lhe tinham vetado a exibição no memorável concerto do Estádio de Wembley, com Sting ou Peter Gabriel a exigirem a libertação do mais conhecido preso de então, e tinham considerado inaceitável, que um sul-africano branco fizesse parte do evento. Muitos dos associados do sindicato inglês, que estivera na origem dessa oposição, tinham depois estado em Sin City, a cidade-casino do apartheid, integrando a lista estabelecida pelas Nações Unidas quanto aos artistas, que violaram a orientação para não atuarem a soldo do regime racista. Entre eles os Queen liderados por Freddie Mercury, juntamente com outros nomes como Frank Sinatra, Ray Charles, Cher, Linda Ronstadt ou ... Amália Rodrigues e Herman José.
Os anos futuros viriam a celebrar o zulu branco em contraponto com esses lamentáveis detratores, cujo nome entretanto caíram em merecido esquecimento.
E, no entanto, fora em Inglaterra, mais precisamente numa pequena localidade do Lancashire que Clegg nascera em 7 de junho de 1953 como fruto do breve casamento de um escocês com uma judia rodesiana. Era ainda bebé, quando os pais se separaram vendo-se no avião para esse continente negro, que consideraria como seu verdadeiro berço, sobretudo, quando já radicado com a mãe em Joanesburgo a partir dos seis anos, começou a sentir curiosidade pela cultura dos negros, que via ostracizados à sua volta. Razão para, durante a adolescência, querer conhecê-los ainda melhor, tendo como grande amigo Sipho Mchunu, que lhe ensinaria as canções e danças tradicionais do seu povo.
Diplomou-se em Antropologia, com uma tese precisamente sobre a cultura zulu e criou com Sipho o primeiro grupo em que a música tradicional ganhava sonoridade ocidental: Juluka.
Quando as empresas discográficas europeias e norte-americanas começaram a assediá-los com espetáculos um pouco por todo o mundo, Sipho decidiu não ser isso o que pretenderia continuar a fazer e deixou o amigo a desenvolver o projeto artístico, primeiro com outro grupo, o Savuka, antes de se afirmar como nome principal de um conjunto de artistas, que quase sempre o foram acompanhando.
Quando cantou Asimbonanga no Estádio Ellis Park de Joanesburgo em 1985 o regime já não pode impedir que uma multidão de gente de todas as etnias cantasse e dançasse o tema dedicado a Mandela, mesmo que ainda demorasse cinco anos a libertá-lo e a render-se ao rumo ditado pela História.
Johnny Clegg muito contribuíra para que ela entrasse nos eixos na ponta sul do seu continente!

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