segunda-feira, setembro 23, 2019

Diário de Leituras/ 23 de setembro de 2019: O suicídio das mariposas


Ao aproximar-se o desenlace final do romance «O Século Primeiro depois de Beatriz», o narrador evoca as urânias, espécie de mariposas que, depositados os ovos, partem depois oceano adentro voando sempre em frente até ficarem esgotadas pelo esforço e caírem definitivamente nas águas.
No romance, que publicou em 1992 - ou seja já depois da queda do muro de Berlim e de Sarajevo, mas antes das Torres Gémeas, do Daesh e dos milhares de afogados no Mediterrâneo - Maalouf compõe uma estória de ficção científica, que toma por eixo a progressiva desigualdade nos nascimentos entre meninas e meninos em certos países não ocidentais, onde a preferência sexual dos filhos vindouros, fundamenta os infanticídios à nascença ou os abortos seletivos.
A exemplo de outras distopias, fundamentadas em hipóteses alternativas, de início existe um breve bater de asas de uma borboleta, que não se adivinha relacionado com as tempestades futuras: de passagem pelo Cairo onde o levara a atividade de especialista em coleópteros, o eminente investigador de um museu parisiense, sente-se tentado a adquirir um pó chamado «favas de escaravelho», cujas potencialidades nos desempenhos viris de quem o ingerir lhe foi muito louvado.
Tudo se complica, quando ganha particular estima em muitas populações mundiais sugestionadas pela  característica de só gerar filhos varões nas mulheres cujos companheiros a ele tenham recorrido. E a massificação do consumo torna-se ainda mais evidente quando a indústria farmacêutica aproveita a oportunidade de negócio e transforma esse pó original num sugestivo produto, devidamente embalado e publicitado.
Em poucos anos as consequências da progressiva raridade de crianças femininas tornam-se evidentes e os cientistas e políticos do ocidente procuram obviar-lhes os efeitos. Mas os países subdesenvolvidos caem no caos com inesperados surtos de violência a derrubarem regimes, a não pouparem embaixadas nem turistas, infaustamente apanhados na vertigem assassina dos revoltados. Na Europa e nos Estados Unidos o empobrecimento da generalidade da população torna-se incontornável, crescendo a insegurança. As ruas esvaziam-se da antiga animação, as pessoas remetem-se aos seus espaços, mesmo sabendo-os potencialmente alvo de súbitos ataques.
A Beatriz do título é a bem amada filha do narrador, em cuja evolução - do nascimento à condição de mulher adulta! -, tudo muda com grande rapidez. E o que Maalouf deixa como comprovativo do seu pessimismo é a ineficácia de qualquer ideologia, sentido de cidadania, sequer ética moral, em poder travar a inevitável viagem humana para o suicídio. Replicando afinal a que as urânias empreendem oceano adentro.

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