quarta-feira, setembro 18, 2019

Diário de Leituras: Um mundo sem regras, mesmo no Amor


O risco de se escrever sobre política é o de, passados dez anos, estarem inevitavelmente datadas as opiniões, que faziam todo o sentido numa determinada altura. Foi o que senti ao ler «Um Mundo sem Regras» de Amin Maalouf que, em 2009, já assistira ao atentado contra as Torres Gémeas e à invasão do Iraque, mas ainda olhava para a eleição de Barack Obama com injustificada expetativa. Como a História o demonstrou não foi apenas pelo constante bloqueio da oposição republicana, que o primeiro presidente negro norte-americano falhou em toda a linha nos seus dois mandatos, mas porque, apesar de ter recebido inusitado Nobel da Paz, ainda a procissão ia no adro, revelar-se-ia um falcão tão temível quanto os antecessores com a diferença de tê-lo sabido disfarçar muito melhor. O livro autobiográfico de Edward Snowden aí está a demonstrar quanto foi acelerada a espionagem de quase todos os habitantes do planeta durante os mandatos de Obama e quanto ele se esforçou para que as denuncias do whistleblower não fossem divulgadas.
Há outro aspeto da análise de Maalouf com que estou em total desacordo: o de dar o marxismo como morto e enterrado só porque a passagem da teoria à prática em várias experiências ao longo do século XX não correram como se pretenderia. De qualquer forma a leitura é agradável por oferecer-nos uma abordagem diferente das que costumam ter os pés assentes na Europa e nos Estados Unidos, daí olhando para o resto do mundo à volta. Embora a residir em França Maalouf consegue posicionar-se a partir do seu Líbano natal e a dar-nos uma perspetiva mais abrangente sobre as idiossincrasias dos povos do Médio Oriente, que tanto influenciam o nosso quotidiano, ou não estejamos a viver por estes dias o episódio dos drones capazes de rebentarem com os campos petrolíferos, que asseguram metade da produção saudita.
Dividido em três partes, Maalouf começa por abordar as vitórias enganadoras, como as que Dabliú Bush julgou registar no Afeganistão e no Iraque, partindo depois para as legitimidades perdidas e as certezas imaginárias. No epílogo faz votos para um mundo sem fronteiras e onde todos sejamos iguais em direitos e deveres - o que contraria esse injustificado juízo sobre as ideias de Marx. Pelo meio vão surgindo alguns episódios pitorescos como aquele que terá acontecido logo após a Guerra dos Seis Dias e levara um alto militar egípcio a insurgir-se contra um político soviético, acusando a URSS de lhes vender armas ineficazes.
- São as mesmas que vendemos aos vietnamitas! - terá respondido o interlocutor, comparando implicitamente a coragem e determinação do povo da Indochina com a abúlica atitude dos exércitos de Nasser.
Fica a dúvida quanto ao que Maalouf hoje acrescentaria tendo em conta o balanço dos mandatos de Obama e o o primeiro de Trump, sem esquecer o sinistro episódio protagonizado pelo Daesh, que só confirmou uma das mais interessantes teses emitidas no livro: na sociedade ocidental o catolicismo favoreceu a existência de intermediários entre os crentes e o seu deus - através de padres, bispos, cardeais e papa - possibilitando um tal distanciamento entre a população e a religião, que uma boa parte dela tornou-se agnóstica ou mesmo ateia. Pelo contrário, nos países islâmicos, essa intermediação foi reduzida ao mais básico, suscitando uma adesão quase sempre fanatizada entre os crentes e o que julgam ser ditado pelo seu deus a partir da leitura dos respetivos exegetas. No primeiro caso a sociedade, que traduzira a intolerância do seu credo através da Inquisição. evoluiu para a tolerância, enquanto no segundo caso aconteceu fenómeno inverso: durante séculos os cristãos, judeus e outros cultos tinham vivido pacificamente na sociedade muçulmana até as guerras ditadas pela estupidez do filho Bush tornarem essa realidade numa definitiva impossibilidade.
Outro livro em que cheguei hoje às últimas páginas foi «A Única História».
Eu, que me tornei fiel leitor de Julian Barnes desde que o descobri em «O Papagaio de Flaubert«, voltei a gostar imenso desta nova proposta, dando-me razão para o incluir no pequeno lote de escritores, que gostaria de ver emparceirados com Saramago, Garcia Marquez, Gunter Grass ou Le Clézio como detentores de um Nobel.
A princípio fiquei algo desconfiado: depois dos mais recentes romances de Inês Pedrosa e de Sérgio Godinho, eis que voltava a deparar com os amores entre um jovem ainda adolescente e uma mulher com idade para ser sua mãe. Mas se na escritora lusa estava em causa a efemeridade de paixão tão etariamente desequilibrada ou no autor de canções se exploravam as relações de poder entre os elementos do casal (que chegariam a derivar para um triângulo amoroso ainda mais singular) em Barnes deparamos com a perenidade do Amor, mesmo confrontado com os piores desafios - o envelhecimento, o alcoolismo e a definitiva senilidade.
Paul apaixona-se por Susan no clube de ténis da aldeia natal em que passa as férias de verão antes de entrar na Universidade. A partir daí o Amor constrói-se como forma de afirmação contra um ambiente social incapaz de aceitar o adultério dela, ainda por cima com quem. A partir dessa circunstância Barnes cria uma intriga, que dura até ao momento em que Paul se despedirá definitivamente daquela que fora a sua amante e continua a ponderar no que teria sido a sua vida em cenários marcados por decisões alternativas.

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