quinta-feira, setembro 05, 2019

(EdH) As Ciências Nazis: a raça, o solo e o sangue


É de março deste ano o documentário de David Korn-Brzoza que tem por tema a falsificação e instrumentalização das Ciências e da História pelos nazis. E Vincent Lindon, que dá a voz off à longa-metragem, começa por nos confrontar com as imagens do macabro achado dos Aliados quando, em novembro de 1944, libertaram Estrasburgo e entraram nas instalações do Instituto de Anatomia da Universidade do Reich: mergulhados em cubas estavam 17 cadáveres completos e 167 partes de outros corpos. Só a eles voltaremos no final do filme, porque somos levados em flash back até 1933, quando Hitler decide convencer os alemães da superioridade da raça ariana sobre todas as demais. E até 1935 quando o engenheiro agrónomo Heinrich Himmler, empossado em chefe das SS, alicia Herman Wirth e Richard Darré para com ele fundarem a Ahnenerbe («Herança Ancestral»), instituto de investigação dedicado à Antropologia, à Arqueologia e à História da Raça Alemã.
Sob a égide desse Instituto, organizaram-se diversas expedições - à Escandinávia, ao Tibete, à América Latina e à Mongólia - destinadas a recolherem provas da tese que o regime porfiava em propagandear: todas as grandes civilizações antigas tinham tido origem na milenar colonização germânica. Apaixonado pela mitologia, mas sem qualquer formação científica, Himmler estava decidido a convencer os alemães da genialidade de um povo agora apostado em dominar os demais com um Império capaz de prolongar por muitos séculos o seu esplendor.
Não viria grande mal ao mundo se Himmler tivesse-se cingido a esse desvario, que o próprio Hitler enquadrava na categoria de excêntrico hobby do lugar-tenente. Só que, desde 1942, os nazis iniciaram experiências criminosas tendo prisioneiros dos campos de concentração como cobaias. Elas tanto tinham por objetivo testar a resistência dos pilotos alemães se se despenhassem no mar e enfrentassem temperaturas muito negativas como aferir o sucesso de medicamentos contra as hemorragias, que pressupunham o prévio baleamento das cobaias. Os cadáveres encontrados em Estrasburgo, transferidos de Auschwitz, destinavam-se a serem utilizados pelo anatomista August Hirt no estabelecimento de uma caracterização rigorosa sobre as diferenças entre arianos e judeus.
Os médicos envolvidos nessas investigações não sentiam qualquer escrúpulo em nelas se empenharem apesar de terem feito o juramento de Hipócrates. Para eles, esse compromisso ético dizia respeito a seres humanos, condição que não reconheciam ao material posto à sua disposição para que fizessem as suas «descobertas». Entre 1933 e 1945 terão sido mais de cem mil as vítimas desses carniceiros que, na maioria, não viriam a ser incomodados no pós-guerra apesar das provas evidentes dos seus crimes. O mais azarado terá sido Wolfram Sievers, diretor do Instituto de Estrasburgo, que foi enforcado em 1948.
David Korn-Brzoza, que já assinara documentários de referência sobre a polícia de Vichy ou as Juventudes Hitlerianas, contou desta feita com a colaboração do historiador Johann Chapoutot para escalpelizar as íntimas relações entre o nacional-socialismo e os meios científicos. Embora não o faça explicitamente, o filme deixa perguntas sem resposta: como foi possível que gente brilhante tenha colaborado com tal horror? Como é que médicos, juristas, historiadores, linguistas, arqueólogos ou biólogos acederam a falsificarem, pilharem e, em muitos casos, a assassinarem gente indefesa a sangue-frio?
À exceção dos judeus que cuidaram de se pôr a salvo nos países, que os aceitaram como exilados, os cientistas alemães - o país que, em 1930, possuía a comunidade do saber mais dinâmica de então - puseram-se ao serviço do combate ideológico e racial, subordinando-se aos absurdos delírios de um demente psicopata decidido a legitimar o desígnio de depuração racial, a germanização dos territórios ocupados e a dominação ideológica do regime. Himmler estava convencido que bastava emitir teses delirantes para que a Ciência lhe encontrasse provas do respetivo fundamento.
Quase no final um dos especialistas desse período histórico afirma que terá sido uma sorte para o Ocidente a expressão do ódio de Hitler contra os judeus. É que, de facto, os melhores físicos, aqueles que seriam capazes de inventar a bomba atómica para armar os V2 e, com estes ganhar a guerra, tinham partido para o exílio sendo substituídos nas universidades e organismos científicos por assistentes, cientificamente competentes, mas sem a genialidade dos que haviam partido. Alguns deles trabalhariam no Projeto Manhattan e dariam aos Estados Unidos a efémera supremacia nuclear...

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