sábado, setembro 14, 2019

(DL) «Azul-Corvo», um belíssimo romance de Adriana Lisboa


A situação é esta: aos treze anos Evangelina ficou órfã de mãe e foi viver com o ex-marido desta em Denver, no Colorado. Fernando, esse antigo guerrilheiro, que se formara em luta de guerrilha na Academia de Pequim e passara algum tempo na região do Araguaia, encontrara ali tranquilo exílio, quando conhecera a mãe da miúda em Londres e a seguira, decidido a com ela casar. Mas, quando Evangelina nascera, já os respetivos rumos se tinham separado, porque Susana não era mulher de ficar muito tempo presa a quem quer que fosse. Ainda assim, quando engravidara e tivera a filha, fora a Fernando que acorrera para lhe garantir oficial paternidade.
No extrato a seguir transcrito, a miúda vive a inédita experiência da neve caída durante a noite, partilhando o entusiasmo com Carlos, o miúdo salvadorenho que, apesar de viver na casa ao lado, pernoita frequentemente ali:
“Havia um bilhete seu em cima da mesa. Não explicava nada, apenas dizia olhe lá fora. Carlos ainda dormia, portanto abri com cuidado a porta da casa que acordava a contragosto.
Lá fora havia uma película branca por cima de todas as coisas, árvores, carros, telhados, rua, calçadas. Objetos pálidos bem pequenos e meio felpudos caíam flutuando do céu, sem som e quase sem peso. Alguns chegavam mesmo a subir de novo no ar, no meio da descida, em petelecos invisíveis do vento quase nenhum. Depois desciam de novo. Depois subiam de novo. Pareciam crianças em festa. Me abaixei, segurei um punhado da nata acumulada à porta de casa e apertei na mão. Senti o frio doer. O ar cortava o meu rosto, o ar entrava com lâminas pelas minhas narinas e pelos meus pulmões. Todas as coisas se deixavam tapar com aquela substância que até então, para mim, só existia em filmes e livros, aquela substância antitropical.
Quando o Saab vermelho estacionou diante de casa, pouco depois, eu e Carlos estávamos na rua, tontos de embevecimento com aquele fenômeno climático historicamente tão pouco nosso.
Minhas orelhas doíam e minhas bochechas doíam. Meu rosto estava vermelho e meu nariz escorria. Existia uma alegria de primeira vez dentro de mim, existia uma espécie de calma euforia. Eu era o menino do interior que vê o mar e se pergunta como é que aquilo não entorna. Eu era o caipira que se depara com os arranha-céus e se pergunta como é que aquilo não cai. E Carlos olhava para mim, imensamente feliz com a minha felicidade, e me dizia que também tinha sido assim com ele na primeira vez.”
O romance é delicioso de se ler e mereceu o Prémio José Saramago com que foi galardoado em 2012. Infelizmente só me dispus a lê-lo sete anos depois por sempre o ter preterido em favor de leituras mais apelativas. Mas era engano meu: entretanto passeei os olhos por tanta coisa já varrida da memória, que melhor valera ter-me disposto a esta proposta. Mas quantos exemplos semelhantes acumulados no andar de baixo arriscam esta mesma possibilidade, sabendo que, para minha grande frustração, o dia não contempla pelo menos o triplo ou o quadruplo das horas disponíveis para tudo quanto neles desejaria cumprir?
Voltando ao romance de Adriana Lisboa temos uma adolescente à procura de um pai biológico de quem nada sabe, mas suficientemente determinada para não se intimidar com os obstáculos. Até porque o pai oficial, aquele que se dera enquanto tal para lhe manter a nacionalidade norte-americana, trata-a com o desvelo de quem entendeu o gesto como assunção da correspondente responsabilidade. Com isso ganhamos o direito a conhecermos alguma coisa sobre a vida da geração pós-hippie no Brasil e nos EUA ou a luta da guerrilha contra a ditadura dos generais idolatrados por Bolsonaro, mormente os tenebrosos crimes com que eles foram garantindo a sobrevivência de um regime odioso.
O romance multiplica-se em muitas outras referências, que vão ao encontro de outras pretéritas memórias. Lembra-se aqui o caso de um sujeito muito peculiar, tão entusiasmado com os grizzlies, que para junto deles foi viver acabando por servir-lhes de repasto (e Werner Herzog rodou memorável documentário sobre o sucedido!) ou essa não menos singular pintora norte-americana chamada Georgia O’Keefe em cuja antiga casa a rapariga irá conhecer a verdadeira avó biológica.
Perante a satisfação garantida por este romance só posso lamentar que a autora radicada nessa tal cidade do Colorado onde situa a história, se mostre tão rara na publicação de novas ficções, que nos venham proporcionar o mesmo agrado. Há já uns quantos meses, que a leitura não me proporcionava tão superlativo prazer.

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