segunda-feira, setembro 23, 2019

Diário de Leituras/ 23 de setembro de 2019: Dos benefícios da viagem para cenários desconhecidos


Agatha Christie chegou a Puerto de La Cruz, na ilha de Tenerife, nos inícios de 1927, acompanhada pela secretária Charlotte Fisher e pela filha, Rosalind, então com 12 anos. A depressão estava-lhe no auge, suscitada pela morte recente da mãe e pela separação do marido, que lhe anunciara a intenção de casar com a mais recente amante, deixando-a sem recursos financeiros. Conhecera um sucesso literário bastante animador com «O Assassinato de Roger Ackroyd», mas o novo romance, que trazia na mala, «O Mistério do Comboio Azul», ia-se arrastando sem lhe conseguir dar continuidade. E, no entanto, fazer a transição de escritora amadora para a que pudesse viver de quanto publicasse, constituía a única alternativa para o incerto futuro.
Acompanhava-a, igualmente, o recente escândalo em que se envolvera, quando desaparecera durante uns dias, sugerindo a possibilidade de se ter suicidado. Na altura, e quando isso ainda era incomum, tinham-se mobilizado meios aéreos para a procurar junto às falésias de Harrogate. Só reaparecera na sequência da reivindicação da recompensa lançada para quem sobre ela desse informações, vendo-se denunciada por um músico do hotel onde se hospedara sob o pseudónimo do nome da amante do marido. Línguas viperinas não tinham tardado a acusá-la de golpe publicitário.
As Canárias significarão para ela a oportunidade de pôr a cabeça em ordem e decidir-se pela reinvenção como mulher e como escritora, mesmo que os romances e contos aí escritos não escamoteiem as inquietações por que se sentia obcecada. No romance com Poirot havia uma mulher desesperada pelos casos de infidelidade do marido e, por isso, pretendendo o divórcio, que ele recusava por viver à sua conta. O detetive das celulazinhas cinzentas incumbir-se-ia de esclarecer o homicídio de que se vira vítima.
Mudando-se para a Gran Canaria para usufruir dos banhos de mar na praia de Las Nieves ela explora o tema do afogamento num conto - O Misterioso Mr. Quin» - homenageando ao mesmo tempo um médico, que muito a ajuda por essa altura, tomando-o como referência para a criação do narrador da história, um velho personagem capaz de escutar  quem o contacta com revelações sobre os dramas quotidianos, incitando o interlocutor a refletir e agir em função das conclusões para que é estimulado.
Superando com determinação o estado precário em que ali chegara, Agatha Christie despede-se do arquipélago espanhol com outro conto concluído, tendo Miss Marple como protagonista, dando início ao que virá a ser a coletânea «Os Treze Problemas».
A breve estadia num ambiente até então desconhecido significara-lhe a mudança interior de que viera tão carecida...

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