segunda-feira, setembro 23, 2019

Diário das Imagens em Movimento/ 23 de setembro de 2019: «A Herdade» de Tiago Guedes


Na primeira cena do filme temos uma árvore recortada na paisagem do montado a informar-nos da localização num espaço rural a sul do Tejo. A câmara inicia, então, um lento travelling, que nos dá a ver um carro em plano de fundo. Ao alcança-lo abre-se uma porta e um jovem avança para um homem parado em primeiro plano a olhar o  que ainda desconhecemos. Prosseguindo o seu curso a câmara revela-no-lo finalmente: numa outra árvore, quase gémea da primeira, está um corpo enforcado. Estabelece-se assim a matriz de um filme excelentemente realizado, a preferir a sugestão da imagem ao que os diálogos poderiam esclarecer de forma bem menos eficiente. Não admira que, avançando na intriga, as trocas de olhares entre os personagens venham a  revelar-se sempre tão esclarecedoras quanto ao que entendemos ser o que elas sabem, mas calam, umas das outras. E há ainda a cena da festa de noivado da cunhada do latifundiário João Fernandes, que evoca «O Leopardo» de Visconti ou «Tudo Bons Rapazes» de Scorcese. Sempre em movimento, a acompanhar a deambulação do protagonista por um espaço em que se sente um estranho, a câmara sugere a dinâmica de quem é ali o único a não estar parado no tempo ao contrário dos que, nesse 24 de abril de 1974, não percebiam quanto estava próximo o momento do chão lhes faltar debaixo dos pés.
As três horas de duração do filme surpreendem, sobretudo, pela fotografia encantatória - como só o nosso Alentejo consegue ser (mesmo que,  absurdamente, a Comporta fique oficialmente na Estremadura!) - e pela interpretação irrepreensível de todos os atores. A intriga, dividida em três momentos históricos diferenciados, está estruturada em torno do tema da imperfeição como Albano Jerónimo no-lo faz reconhecer, quando falava recentemente do filme para o público do Festival de Toronto.  É que o latifundiário poderia ser apresentado como um escroque ou um herói - na forma como enfrenta a Pide e os esbirros do regime! -, mas revela-se muito mais do que isso: é simplesmente humano na forma de se afirmar dono e senhor do seu espaço, não se incomodando de ser isto ou aquilo quem para ele trabalha, mas reagindo com determinação a quem o queira obrigar a ser o que não quer. Não se pretenderia mau marido ou pai, mas é-o porque assim lho ditam os genes! Importa então voltar a olhar para essa cena primeira em que o próprio pai o obrigara a olhar para o corpo sem vida do irmão mais velho pendurado na árvore. Porque estranha-se-lhe a atitude para com Miguel, o filho que, sem disso se dar conta, despreza por ser demasiado fraco, desmerecedor da sua atenção. Não podia imaginar que seria ele quem viria a despoletar a tragédia final, algo conotada com a queirosiana Rua das Flores, mas passando-se exclusivamente no espaço circunscrito do latifúndio donde raramente a câmara sai. 
Esse Miguel é o mal amado herdeiro dessa herdade - a homofonia de ambas as palavras não é um acaso porque decorrem da mesma origem - e adivinhamo-lo incapaz de tomar as rédeas de algo em acelerada ruína. Porque se até então testemunháramos as variações da referida imperfeição, o que conclui o filme é a inevitável decadência de algo que constituíra a razão maior de uma obcecada sensação de propriedade, que foi decaindo na razão inversa de uma transformação social capaz de tornar obsoletas umas classes para que outras, mais conformes com os tempos presentes, se afirmem. Nesse sentido o filme de Tiago Guedes constitui uma eloquente lição de História sobre a segunda metade do século vinte português.

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