sábado, setembro 07, 2019

(S) Como uma pimbalhada me fez recordar Veneza


Veneza, à segunda vez que lá estive, conseguiu tornar-se tão mágica quanto antes a imaginara. Bastou deixar que a noite caísse, as hordas de turistas desandassem para outras paragens e ficássemos com as labirínticas ruas, adjacentes aos canais, só para nós e outros escassos privilegiados. As sombras cresciam nas pequenas praças, muitas vezes, adros de igrejas, que não teríamos disponibilidade para conhecer, e só detetávamos a presença de alguns habitantes nos andares mais altos das ruelas por onde transitávamos.
Lá para as nove da noite regressámos à Praça de São Marcos pelo Rialto e, também ali, sobravam as pombas pousadas no pavimento onde, meia dúzia de horas atrás, quase não tinham permissão de pousar, tantos eram os que ali se postavam de costas para a catedral, deixando-se imortalizar num momento, que considerariam inesquecível para o resto das suas vidas.
As concentrações humanas cingiam-se às que enchiam as cadeiras das esplanadas do Florian ou do Quadri, somadas às dos pelintras que, cientes de quanto lhes custaria um mero espresso, estavam num circulo mais alargado a apreciarem o desempenho dos quartetos de cordas a ali atuarem ao vivo.
O muro de Berlim implodira um par de anos atrás arrastando consigo a acelerada transformação política dos países até então incluídos na órbita soviética. E, de súbito, a atração pelos dólares e pelos marcos dera aos novos governantes uma menor propensão para subsidiarem a cultura. Os instrumentistas muito competentes de inúmeras orquestras da Europa Oriental viram-se, de súbito, abandonados à sua sorte. Pelo aspeto os que enchiam a noite veneziana de sons harmoniosos provinham dessas origens. Mas, cientes de que Schubert ou Beethoven não seriam particularmente os compositores adequados para quem ali os ouvia, optavam por reportório fácil de entrar nos ouvidos mais moucos. Os temas de filmes na moda estavam mesmo a jeito para adequarem-se à circunstância.
Naquele lugar e momento contribuíam para a magia do espaço, mas convenhamos nada terem a ver com a solenidade da música erudita. Dali extraídos e apresentados numa qualquer outra sala estariam para ela como o pimba para a música ligeira de qualidade.
Soltou-se-me a memória para aquela recordação do passado ao deparar com a apresentação televisiva de um espetáculo «abrilhantado» por dois violoncelistas croatas na enormíssima sala da Ópera de Sidney. A exemplo de André Rieu ou Andrea Bocelli não se trata de música clássica na sua verdadeira natureza. Pode-se-lhe chamar qualquer coisa, desde espetáculo de entretenimento ou bota-da-tropa, mas nada tem a ver com essa outra magia de entrar numa sala de concerto, ter uma orquestra à nossa frente e dela colhermos o impressionante desfile de sons engendrados por gente de exceção, que os terão criado na mente e vertido para extensas partituras.

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